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NINA HORTA
O miolo do Natal
Que tipo de festa era aquela, com árvore, pais, mães, maridos,
mulheres e crianças?
TERIA MUITA coisa a falar do
Natal, mas tudo que vem lá do
fundo precisa ser escrito com
beleza, senão fica brega. Então é melhor lembrar das bobagens, dos nadas. Estas fotos, aqui, quando armamos uma barraca de Exército na
grama para as crianças. Os presentes estavam todos lá, sleeping bags,
cordas, lanternas, pás, álbum de sobrevivência nas selvas do jardim.
E eles ainda eram pequenos a
ponto de ter pavor de dormir lá fora,
e tomaram banho nus, na água gelada de um balde furado, fritaram ovos
num fogareiro de ferro, se prepararam para as camas junto do cheiro
de grama cortada, esperando as onças do mato.
Era um tempo em que se perguntava pouco sobre a dor, a pobreza, o
sofrimento. Tudo no mundo se ajeitaria. Não dava tempo para pensar,
de repente era preciso vigiar o pernil, trocar a água do bacalhau, não
esquecer as castanhas do frango ensopado da mãe, enfeitar a sobremesa, acender as luzinhas da rena que
corria por sobre os galhos de um loureiro, alçando vôo para não se sabe
onde.
O que dava força era a segurança, a
certeza, uma grade forte que sustentava tudo, mantida pela mesmice da
casa, das caras, dos abraços, das comidas, da inocência das crianças.
Pequenos desconfortos existiam.
As noras e o genro gostariam mais
de estar na casa dos pais, afinal não
se passava o Natal em lugar nenhum, partindo o tempo em dois.
Outros fingiam um pouco, mas se irritavam com aquela história de presentes, ohs e ahs, era difícil e ainda
deve ser, encontrar o cerne do Natal,
o miolo do Natal. Desdobrar a palavra, enrolar na língua, será que tinha
um sentido maior que às vezes nos
escapava, ou era mesmo só uma noite de comidas repetidas e um velho
vestido de vermelho?
A questão era irresolúvel. Todas as
especulações, os perus, as farofas, as
cerejas e as nozes do mundo não
matariam a charada. Como esquadrinhar o mecanismo daquela festa,
posta a funcionar por um ou dois
que tentam levar adiante o impossível diante de um berço ou um panetone?
Na minha cabeça sempre acho
que lá fora, atrás dos vidros, tinha
uma lua, um pinheiro, um estourar
de champanhe, muita, muita vela,
vizinhos que exageravam no barulho e o cachorro que entrava no espírito, ganhava ossos de borracha e
corria de cá para lá, como um doido.
Dentro da casa, sempre uma empregada antiga, sentada na mesa da
ceia, se sentindo fora do lugar e querendo estar ao pé da mãe, numa aldeia perdida em Portugal, comendo
batatas nas cinzas do fogo. E fazia
calor, se não se tomasse conta o dia
inteiro os pernilongos estragariam a
festa. Que tipo de festa era essa, estragável por uns zunidos e mordidas
nas canelas, festa com árvore e menino Deus, e pais, mães, maridos,
mulheres e crianças?
Quando vinham estranhos ou estrangeiros, as peças se ajeitavam
noutra configuração, todos se esforçavam para mostrar o melhor de si,
eles eram o Outro, espreitando pelas
fendas, nos refletíamos neles e eles
comiam muito peru, a carne escura
com farofa, não sei por que os estranhos sempre preferiam a carne escura.
Beleza teimosa
Tudo era excepcionalmente lindo e
brilhante, lá isso era, e aquela beleza
foi murchando devagarinho, como estes plásticos de bolhas, bolha por bolha, até que um dia murchou para
sempre, machucada, e não tinha mais
a mão do mais forte daquele que nem
em Natal acreditava.
Mas é uma beleza mais que teimosa,
e sei que só está esperando que outra
inocência se manifeste, que o riso de
novas crianças cubra de novo a alegria
e que tudo renasça com um simples
dourado de peru ao forno, que os leve a
outros dourados. Mais o bacalhau,
mais a rena. E o berço. E muita farofa.
Que pode ser com blueberries frescas,
fica ótima.
ninahorta@uol.com.br
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