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CARLOS HEITOR CONY
Os grandes momentos
Escrevo até hoje. Coisas sem a transcendência das tentativas iniciais de ser entendido
NÃO SEI não, mas deve acontecer com todos, ou pelo menos com alguns. De repente,
uma coisa qualquer, uma lembrança, um livro, um espelho, um sonho
-e damos uma virada na vida, mudamos de rumo, pode ser até que dobremos a esquina errada e nunca
cheguemos onde pretendíamos ir,
pode ser também que encontremos
o momento da verdade, não a verdade absoluta, ontológica, mas a verdade possível, a nossa verdade.
É clássica a citação do estalo de
Vieira. Lenda ou realidade, o fato é
que o futuro imperador da nossa língua -no dizer de Fernando Pessoa- era um jovem apagado, não
exatamente um idiota, mas limitado
intelectualmente.
Um dia, alguma coisa estalou dentro de sua cabeça e ele virou o gênio,
adquiriu aquele tipo de raciocínio
que até hoje nos espanta, e o domínio do português do qual se tornou
soberano.
O exemplo de Vieira, se verdadeiro, seria histórico. Na ficção, temos o
caso de Alonso Quijana, um fidalgo
espanhol que, aos 50 anos, depois de
ter devorado uma biblioteca inteira
de livros sobre a cavalaria andante,
tornou-se Dom Quixote de la Mancha e partiu mundo afora, lutando
pela justiça e defendendo a honra
das donzelas.
E temos o caso de Guimarães Rosa. Menino do interior mineiro, ele
via o mundo embaçado, sem foco,
misturava as paisagens, não tinha
noção das distâncias. Até que um dia
botou uns óculos e ficou deslumbrado. E o que viu -o mundo- transportou para a sua literatura, na qual
não podia faltar a referência que
mudou a sua vida.
Sandra Kogut em seu "Mutum",
adaptação para o cinema de um dos
contos de Guimarães Rosa, coloca o
episódio autobiográfico tal como deveria ter acontecido.
Foi um momento da verdade luminoso, ao contrário do momento
de verdade daquele personagem de
Kafka, que acordou um dia transformado em monstruoso inseto.
Juscelino Kubitschek veio de Diamantina para Belo Horizonte. Na
primeira manhã na capital mineira,
viu um açougue ladrilhado, chão
com lajotas brancas. Ele conhecia os
açougues do interior, as carnes sangrando nas paredes de barro, o chão
de terra com pedaços de tripas cobertas de moscas. Em suas memórias, ele deixou uma boa página sobre o encantamento que sentiu.
Como todo mundo tem direito a
seu momento de verdade, o meu foi
mais complicado, mas com a vantagem de ter um prolongamento que
dura até hoje. Eu tinha um defeito
de fala, trocava as letras, era discriminado. Com antecipada razão, me
consideravam um retardado mental. Na festa dos 15 anos do meu irmão mais velho, os amigos dele me
chamaram num canto e pediram
que eu dissesse esta frase: "Dona
Jandira adora um fogão". Trocando
o "g" pelo "d", eu disse o que todos
esperavam: "Dona Jandira adora
um fodão".
Riram muito e logo me dispensaram, voltei a ser o solitário da festa,
não apenas daquela, mas de outras.
No dia seguinte, peguei um caderno
de folhas pautadas e escrevi da primeira à última linha: fogão, fogão,
fogão... Sem saber, acho que fiz o primeiro poema concreto da história,
antes dos irmãos Campos, do Décio
Pignatari, do Ferreira Gullar.
Mostrei o resultado a todo mundo, ninguém riu, mas também ninguém entendeu. "Este menino, além
de retardado, está ficando maluco!".
Admiti que era retardado mesmo,
não podia contrariar o pensamento
único, o consenso que se formara a
meu respeito. Mas sabia que não estava maluco. Eu podia escrever corretamente as palavras que não sabia
pronunciar.
No início desta crônica, falei sobre
aqueles que dobram a esquina errada e nunca chegam a lugar algum.
Até hoje não sei se foi aí que dobrei a
minha esquina errada, achando que
meu destino não seria falar, mas escrever.
E foi o que fiz. Escrevia bilhetes
para minha mãe, pedindo banana
frita como sobremesa. Escrevi uma
confissão vergonhosa ao meu irmão,
assumindo o roubo de umas bolas de
gude que eram o seu patrimônio e
sua glória.
Escrevo até hoje. Coisas sem a
transcendência das primeiras tentativas de ser entendido. Não tive o estalo de Vieira, os delírios de Alonso
Quijana, os óculos do Rosa, os açougues ladrilhados de JK. Meu momento da verdade ficou mesmo sendo um fodão, quer dizer, um fogão.
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