São Paulo, sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY

Os grandes momentos

Escrevo até hoje. Coisas sem a transcendência das tentativas iniciais de ser entendido

NÃO SEI não, mas deve acontecer com todos, ou pelo menos com alguns. De repente, uma coisa qualquer, uma lembrança, um livro, um espelho, um sonho -e damos uma virada na vida, mudamos de rumo, pode ser até que dobremos a esquina errada e nunca cheguemos onde pretendíamos ir, pode ser também que encontremos o momento da verdade, não a verdade absoluta, ontológica, mas a verdade possível, a nossa verdade.
É clássica a citação do estalo de Vieira. Lenda ou realidade, o fato é que o futuro imperador da nossa língua -no dizer de Fernando Pessoa- era um jovem apagado, não exatamente um idiota, mas limitado intelectualmente.
Um dia, alguma coisa estalou dentro de sua cabeça e ele virou o gênio, adquiriu aquele tipo de raciocínio que até hoje nos espanta, e o domínio do português do qual se tornou soberano.
O exemplo de Vieira, se verdadeiro, seria histórico. Na ficção, temos o caso de Alonso Quijana, um fidalgo espanhol que, aos 50 anos, depois de ter devorado uma biblioteca inteira de livros sobre a cavalaria andante, tornou-se Dom Quixote de la Mancha e partiu mundo afora, lutando pela justiça e defendendo a honra das donzelas.
E temos o caso de Guimarães Rosa. Menino do interior mineiro, ele via o mundo embaçado, sem foco, misturava as paisagens, não tinha noção das distâncias. Até que um dia botou uns óculos e ficou deslumbrado. E o que viu -o mundo- transportou para a sua literatura, na qual não podia faltar a referência que mudou a sua vida.
Sandra Kogut em seu "Mutum", adaptação para o cinema de um dos contos de Guimarães Rosa, coloca o episódio autobiográfico tal como deveria ter acontecido.
Foi um momento da verdade luminoso, ao contrário do momento de verdade daquele personagem de Kafka, que acordou um dia transformado em monstruoso inseto.
Juscelino Kubitschek veio de Diamantina para Belo Horizonte. Na primeira manhã na capital mineira, viu um açougue ladrilhado, chão com lajotas brancas. Ele conhecia os açougues do interior, as carnes sangrando nas paredes de barro, o chão de terra com pedaços de tripas cobertas de moscas. Em suas memórias, ele deixou uma boa página sobre o encantamento que sentiu.
Como todo mundo tem direito a seu momento de verdade, o meu foi mais complicado, mas com a vantagem de ter um prolongamento que dura até hoje. Eu tinha um defeito de fala, trocava as letras, era discriminado. Com antecipada razão, me consideravam um retardado mental. Na festa dos 15 anos do meu irmão mais velho, os amigos dele me chamaram num canto e pediram que eu dissesse esta frase: "Dona Jandira adora um fogão". Trocando o "g" pelo "d", eu disse o que todos esperavam: "Dona Jandira adora um fodão".
Riram muito e logo me dispensaram, voltei a ser o solitário da festa, não apenas daquela, mas de outras. No dia seguinte, peguei um caderno de folhas pautadas e escrevi da primeira à última linha: fogão, fogão, fogão... Sem saber, acho que fiz o primeiro poema concreto da história, antes dos irmãos Campos, do Décio Pignatari, do Ferreira Gullar.
Mostrei o resultado a todo mundo, ninguém riu, mas também ninguém entendeu. "Este menino, além de retardado, está ficando maluco!". Admiti que era retardado mesmo, não podia contrariar o pensamento único, o consenso que se formara a meu respeito. Mas sabia que não estava maluco. Eu podia escrever corretamente as palavras que não sabia pronunciar.
No início desta crônica, falei sobre aqueles que dobram a esquina errada e nunca chegam a lugar algum. Até hoje não sei se foi aí que dobrei a minha esquina errada, achando que meu destino não seria falar, mas escrever.
E foi o que fiz. Escrevia bilhetes para minha mãe, pedindo banana frita como sobremesa. Escrevi uma confissão vergonhosa ao meu irmão, assumindo o roubo de umas bolas de gude que eram o seu patrimônio e sua glória.
Escrevo até hoje. Coisas sem a transcendência das primeiras tentativas de ser entendido. Não tive o estalo de Vieira, os delírios de Alonso Quijana, os óculos do Rosa, os açougues ladrilhados de JK. Meu momento da verdade ficou mesmo sendo um fodão, quer dizer, um fogão.


Texto Anterior: Resumo das novelas
Próximo Texto: Arquitetura: Público de 7ª Bienal no Ibirapuera diminui
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.