São Paulo, terça-feira, 21 de dezembro de 2010

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Marchando com Barbra Streisand


Se a maioria dos soldados não quer homossexuais, é absurdo impor quando a sobrevivência está em jogo


CONSEGUI ESCAPAR ao serviço militar obrigatório por razões médicas. Nada de especial. Meu pé esquerdo.
Operado anos antes e com dois parafusos internos para mostrar, rumei para o recrutamento de bengala. E um atestado médico na mão. O médico talvez tenha exagerado um pouco no conteúdo e no tom da missiva. Mas, em defesa dele, declaro publicamente que fui eu quem pediu. "Totalmente inapto para servir nas Forças Armadas", lia-se na carta. Foi a primeira vez que a palavra "inapto" ganhou aos meus olhos contornos de elogio.
Cheguei cedo ao centro militar. Coxeando, claro, como um dr. House covarde. Um sargento apareceu aos mancebos e, com voz firme, ordenou: "É despir, pessoal, é despir!" A última vez que tinha ouvido semelhante ordem foi numa festa de aniversário onde havia excesso de álcool e déficit de pudor. Os pais da aniversariante ameaçaram processar a turma inteira. Mas divago.
Despi-me. Eu e mais cem. Em fila, fomos marchando, uns atrás dos outros, com as mãos a tapar as partes e os olhos postos nas nádegas do parceiro da frente. Desconfio que muitos dos meus companheiros descobriram uma homossexualidade reprimida nesse momento. Havia ereções lá pelo meio.
O médico das Forças Armadas analisou o meu processo, passou os olhos pela radiografia. Suei. Tremi. Mas ia preparado para tudo. Se o meu pé esquerdo não me salvasse, alegaria problemas psíquicos, aliás fáceis de comprovar por qualquer pessoa que conviva comigo.
E se os problemas psíquicos também não me salvassem, jogaria a carta decisiva: um CD de Barbra Streisand. "O que é isso", perguntaria o médico, horrorizado. "Isso", diria eu, aproximando-me dele como um felino em busca da sua presa, "isso, meu amor, é a prova de que estou louco por você". E beijaria o pobre coitado.
Felizmente, meu pé chegou para as encomendas. Saí do quartel, a bengala foi jogada no lixo. Mas hoje penso que, se a moda americana se espalha pelo mundo, milhares de outros rapazes não terão a minha sorte. Sim, eu sei: nos EUA, a tropa é facultativa. Por enquanto. Mas temo que a decisão do Senado irá criar doutrina. Segundo leio, a velha e inteligente política do "don't ask, don't tell" (não pergunte, não diga) foi derrubada por democratas e alguns republicanos. Os homossexuais poderão servir abertamente nas Forças Armadas. Aplausos?
Tenho dúvidas. Sou contra o preconceito. Aliás, para falar racionalmente, nem sequer o entendo: como escrevi anos atrás, citando o insuspeito Gore Vidal nesta Folha, "homossexual" é adjetivo, não substantivo. Descreve um ato, não uma "identidade". O que alguém faz entre os lençóis não tem qualquer relevância pública. Só púbica.
Acontece que essa minha posição é apenas válida num contexto civil e "democrático", em que os preconceitos não mexem com a sobrevivência da comunidade. As Forças Armadas, pelo contrário, não são uma instituição "democrática". Nem poderiam ser. São um corpo hierárquico, talhado para situações limite de vida ou de morte, e onde os "preconceitos" da soldadesca devem ser tolerados.
Faz parte da nossa sensibilidade moderna pretender impor os valores "corretos" em todos os contextos, grupos ou instituições. Mas é necessário respeitar a natureza própria de diferentes grupos ou instituições.
Se a maioria dos soldados prefere não ter "homossexuais" a bordo; se a mera possibilidade de haver "homossexuais" nas Forças Armadas não contribui para a coesão, a confiança e a concentração dos homens em conflito, é um absurdo perigoso pretender impor os valores "corretos" da vida civil a uma instituição onde a sobrevivência, deles e nossa, se joga a cada momento.
No caso dos Estados Unidos, sabemos hoje que, apesar da aprovação do Pentágono para a derrubada da anterior lei, os chefes dos Marines, da Força Aérea e do Exército se opunham a essa derrubada. Só a Marinha, talvez por inspiração cinematográfica (lembrar Fassbinder), se mostrava receptiva.
Estamos na presença de preconceitos? Não nego. Mas são preconceitos que têm em conta os sentimentos do coletivo. E, em cenário de guerra, o coletivo é tudo.
E se o leitor pensa que defendo isso para que meus filhos e netos possam fugir das casernas com um CD de Barbra Streisand, desengane-se. Um mundo seguro é mais importante que Barbra Streisand.

jpcoutinho@folha.com.br

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Marcelo Coelho


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