São Paulo, sábado, 22 de janeiro de 2011

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

OPINIÃO FICÇÃO

Houellebecq e Cortázar encerram dilemas

Intercâmbio entre artistas e o turismo, que tem início com Duchamp, marca a trama de "O Mapa e o Território"


JULIO CORTÁZAR, QUE ESTAVA NAS ANTÍPODAS DO CINISMO DE HOUELLEBECQ, TEVE MAIS DE UMA INTUIÇÃO SOBRE ESSE INTERCÂMBIO ESTRANHO ENTRE ARTE E TURISMO QUE HOJE VEMOS SE GENERALIZAR

ALAN PAULS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A boa notícia: pela primeira vez, um livro de Michel Houellebecq tem um herói artista. A má: o herói é mais insosso, apático e desidratado que os heróis não artistas dos romances anteriores.
De fato, o Jed Martin de "O Mapa e o Território" é um artista sem vocação, sem projeto e sem história.
Alguém que não é "chamado", mas empurrado ao território da arte por um complô mais ou menos aleatório de circunstâncias, que permanece nele não tanto por convicção ou prazer quanto por inércia.
Jed não tem raízes na arte, mas no nada. E é ali, no nada de uma escala banal na rodovia francesa A20, enquanto se dirige com seu pai para o enterro de sua avó, que o surpreende aquilo que o narrador do romance chama de "uma revelação artística": os mapas Michelin, matéria-prima das fotografias com as quais ele estreia e triunfa no mundo da arte.
Como de costume, Houellebecq nunca é tão perspicaz quanto quando fareja as tendências que agitam o presente. A aliança entre turismo e arte contemporânea é uma delas. E, em sua origem, está no demônio chamado Marcel Duchamp (1887-1968).
A partir de Duchamp e seu famoso urinol (1917), a arte deixa de ser alguma coisa que existe nela mesma e passa a ser tudo o que ocorre ao artista que possa ser arte.
Nada intrínseco a define. A arte se define por algo invisível e drástico: uma decisão. "Aquele que contempla é quem faz o quadro", diz Duchamp.
Essa mesma reviravolta conceitual é o que autoriza a pergunta: "Quem é mais artista em "O Mapa e o Território'?". Jed Martin, que sequestra com sua câmera os mapas Michelin e os amplia, ou a própria empresa Michelin, que recorta, fotografa e narra monumentos franceses para então vendê-los a russos, indianos e chineses?
Que diferença real existe entre importar um mapa rodoviário para o reino da arte e importar uma abadia ou um par de tamancos jogados ao chão num celeiro da Bretanha para o patrimônio cultural da França? Julio Cortázar (1914-1984), que estava nas antípodas do cinismo de Houellebecq, teve mais de uma intuição sobre esse intercâmbio estranho entre arte e turismo que hoje vemos se generalizar.
Em "Cartas a los Jonquières", uma coletânea de cartas publicada quase ao mesmo tempo que "O Mapa e o Território", o autor se apresenta não tanto como escritor quanto como um turista incansável, voraz.
Sua agenda apertadíssima inclui museus, monumentos, parques, catedrais, e configura uma verdadeira escola de visão. "Creio que aquilo que vamos vendo, vemos bem", escreve, "porque voltamos, nos demoramos, olhamos até mais não poder.
Oh, os olhos, que tiranos, que déspotas...".
Que artistas, seria preciso acrescentar. Porque Cortázar só converte o turismo em arte quando seus olhos, distraídos por um instante do Louvre ou do palácio da Scala Santa de San Giovanni, criam o inesperado.
Cortázar -inimigo acirrado dos turistas- fabricava turismo com sua literatura.
Fabricava a Paris de Cortázar, aquela mesma onde hoje se perdem centenas de turistas intelectualizados, usando o livro "O Jogo da Amarelinha" como guia Michelin.


ALAN PAULS , escritor argentino, é autor de "O Passado" (Cosac Naify), entre outros
Tradução de CLARA ALLAIN


O MAPA E O TERRITÓRIO

AUTOR Michel Houellebecq
EDITORA Flammarion (importado)
QUANTO US$ 44,56 (cerca de R$ 74, 428 págs.)

CARTAS A LOS JONQUIÈRES

AUTOR Julio Cortázar
EDITORA Alfaguara (importado)
QUANTO US$ 18,99 (cerca de R$ 30, 220 págs.)


Texto Anterior: Não Ficção
Próximo Texto: Internet transformou a relação de poder entre críticos e leitores
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.