São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2004

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"A PAIXÃO DE CRISTO"

Possível caráter anti-semita de filme de Mel Gibson vem de verso contido no Evangelho de Mateus

Discussão surge de expressão de ira sem contexto

Reuters
Cena da Última Ceia retratada em "A Paixão de Cristo", com direção de Mel Gibson, em que uma frase dos evangelhos foi cortada por fomentar o anti-semitismo


JACK MILES
DO "THE NEW YORK TIMES"

"A Paixão de Cristo", de Mel Gibson, provocou uma tempestade de discussões sobre seu possível caráter anti-semita ou a idéia de que, se não for de fato anti-semita, seja próprio para ser explorado para fins anti-semitas. A polêmica levou os produtores a cortar do filme uma frase citada nos evangelhos que, historicamente, fomenta o anti-semitismo.
Segue um guia ao fundo teológico e histórico do filme, para quem não guarda uma cópia da Bíblia (ou da Torá) no criado-mudo.
 

Pergunta - O que dizer da história da perseguição cristã contra os judeus, por conta de eles serem vistos como "assassinos de Cristo"?
Resposta -
A afirmação de que os evangelhos são anti-semitas se baseia num verso contido em Mateus 27:24-25: ""Pilatos viu que nada adiantava, mas que, ao contrário, o tumulto crescia. Fez com que lhe trouxessem água, lavou as mãos diante do povo e disse: "Sou inocente do sangue deste homem justo. Isto é lá convosco!". E todo o povo respondeu: "Caia sobre nós o seu sangue e sobre nossos filhos!'". O Evangelho de Mateus é o único dos quatro evangelhos do Novo Testamento a incluir essa fala. Embora a modificação seja típica do tipo de liberdade que os roteiristas tomam ao transformar um livro num roteiro de filme, ela teria tido o efeito de tornar ainda mais oficial a presunção de responsabilidade pela execução.
Entretanto, nos evangelhos, diferentes multidões judaicas têm visões distintas de Jesus e às vezes se confrontam publicamente. O Evangelho de Mateus foi quase certamente escrito por um judeu cristão para outros judeus como ele, contra seus adversários judeus. Imagine a raiva dos israelenses seculares diante do que os israelenses ultra-ortodoxos descreveram como a execução de Yitzhak Rabin e como estes aplaudiram Ygal Amir quando ele cometeu o assassinato. Por intensa que tenha sido essa ira, não foi uma ira anti-semita, pois todos os envolvidos eram judeus. A mesma coisa pode ter acontecido no caso de Jesus. Infelizmente, porém, quando um evangelho contendo uma expressão tão forte de ira migra para fora de seu contexto judaico original, passando para outros contextos em que os judeus são minoria, o verso notório adquire um potencial anti-semita inteiramente novo e assustador. Na minha opinião, ele conserva esse potencial até hoje.

Pergunta - O que diz a teologia cristã?
Resposta -
Que a morte de Jesus não é um mal que poderia ser corrigido se seus assassinos pudessem, de alguma maneira, ser levados diante da justiça. Que aqueles que mataram Jesus, embora tenham pecado, eram instrumentos nas mãos de Deus e que o inimigo de Deus não era seu povo, Israel, mas Satanás. Que foi Satanás, e apenas ele, quem foi derrotado quando Jesus se ergueu dos mortos: o Paraíso perdido, o Paraíso reconquistado. Mas alguma vez os anti-semitas se preocuparam, de fato, com a teologia?

Pergunta - O que levou ao confronto entre Jesus e os outros judeus?
Resposta -
Quando Jesus deixou a Galiléia e começou a atrair multidões nas ruas de Jerusalém com suas pregações apocalípticas, os colaboradores judeus dos romanos se alarmaram, pensando em qual poderia ser a reação romana. Para citar o Evangelho de João: "Que faremos? Esse homem multiplica os milagres. Se o deixarmos proceder assim, todos crerão nele, e os romanos virão e arruinarão a nossa cidade e toda a nação." Um deles, chamado Caifás, que era o sumo sacerdote daquele ano, disse-lhes: "Vós não entendeis nada! Nem considerais que vos convém que morra um só homem pelo povo e que não pereça toda a nação'" (João 11:47-50).
A ironia desse trecho-chave é que, deixando de lado o aspecto implacável de sua visão, a disposição de Caifás em aquiescer com o domínio romano era igualada pela de Jesus. Não só Jesus não era militante -era pacifista radical, e sua posição com relação a Roma era escandalosamente obediente: "Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus" (Marcos 12:17). Imagine Moisés dizendo "dai ao Faraó o que é do Faraó, e a Deus o que é de Deus", e terá alguma idéia da transformação que Jesus e seus seguidores judeus se dispunham a operar.
Em termos históricos, portanto, Jesus pode ser visto como vítima de um erro trágico ou de um cálculo cínico dos judeus que o denunciaram aos romanos. Mas, em qualquer um dos casos, o primeiro e fatídico passo contra ele foi dado não por OS JUDEUS, mas por ALGUNS JUDEUS. Fontes judaicas e cristãs da época atestam que Jesus tinha inimigos judeus influentes. O que chama a atenção, porém, é que, em vista do medo que os cristãos primitivos sentiam da atenção romana hostil, as palavras do mais antigo sumário de fé cristã atribuem a culpa (pela morte de Jesus) ao governador romano, se é que a atribuem a alguém. Na visão de são Pedro, os envolvidos na morte de Jesus faziam parte do plano eterno de Deus. Falando como judeu aos outros judeus, no primeiro grande sermão de sua carreira, Pedro disse: "Sei que o fizestes por ignorância, como também os vossos chefes. Deus, porém, assim cumpriu o que já antes anunciara pela boca de todos os profetas: que o seu Cristo devia padecer" (Atos dos Apóstolos 3:17-18).

Pergunta - Será que vamos perder alguma coisa, então, se o verso fatídico não estiver presente?
Resposta -
Não, na medida que os Evangelhos de Marcos, Lucas e João tampouco são falhos por não conterem o verso presente em Mateus. De resto, espero que "A Paixão...", que ainda não vi, não justifique o pior que se diz sobre ele antes de seu lançamento. Mas, se isso acontecer, o resultado será mais uma pena do que um perigo.


Tradução de Clara Allain


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