São Paulo, quarta-feira, 22 de fevereiro de 2006

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CRÍTICA

Cinismo assinala abismo entre humanismo literário e vida real

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Um dos muitos méritos de "Capote", que entra em cartaz nesta sexta, é o de evitar o conhecido clichê hollywoodiano dos escritores empacados no processo de criação. Pode ser Virginia Woolf ("As Horas", de Stephen Daldry) ou Lillian Hellman ("Julia", de Fred Zinnemann), tanto faz: invariavelmente, papéis são arremessados ao lixo, cigarros se consomem, cabeças se coçam e gritos de agonia se emitem -antes, é claro, do sucesso que chega com a publicação da obra-prima.
Bloqueios desse tipo não tinham como acontecer quando Truman Capote (1924-1984) escreveu "A Sangue Frio". Do ano de 1959, quando o já famoso escritor e roteirista leu no "New York Times" a notícia do assassinato de uma família inteira na minúscula localidade de Holcomb, Kansas, até 1965, quando seu magistral "romance de não-ficção" sobre o crime foi finalmente publicado, Truman Capote comportou-se com determinação literária e grande garra jornalística.
A certeza com relação aos próprios objetivos e a indiferença moral quanto aos meios de obtê-los -ao lado de imensas quantidades de ternura, talento, fragilidade e arrogância- fazem de Truman Capote um personagem marcante, a que a interpretação de Philip Seymour Hoffman -indicado ao Oscar- serve com espantosa, mediúnica exatidão.
Uma das cenas mais bonitas do filme justamente explora as ambiguidades morais do autor -e também põe em cena outro contraste, o do poder da palavra escrita face à eloquência da imagem cinematográfica. É quando Truman Capote está num teatro, nervosíssimo, diante de uma chique platéia nova-iorquina, e começa a ler em voz alta trechos de seu romance, ainda inédito. Passa um tempo, e a câmera vai mostrando os muitos rostos, as expressões silenciosas e emocionadas de quem ouvia a narração. Naquele momento, uma forte corrente de comunhão humana se dá entre autor e público, mas é como se também se estendesse entre vítimas e criminosos, uma vez que, pela arte do escritor, a substância comum a todas as pessoas parece aos poucos emergir.
Um corte, e vemos o escritor entre seus amigos, nos camarins, celebrando com bons goles de "scotch" o sucesso do evento; cinismo, deboche e sarcasmo desenfreados assinalam rapidamente o abismo entre humanismo literário e vida real.
Esse abismo será explorado de várias formas e com muitas nuances ao longo do filme. Nas primeiras cenas, tudo é feito para que antipatizemos com o tipo esnobe de Capote; mas o poder extravagante de sua inteligência não tem como não cativar o espectador, do mesmo modo que fascina a provinciana comunidade de Holcomb, pouquíssimo preparada para o estrelismo e as bichices de Capote. Não fosse o contraponto de normalidade proporcionado por uma amiga, a modesta escritora Harper Lee (Catherine Keener), que o acompanhava na viagem, a reportagem de Capote nunca teria sido feita.
Egocêntrico, afetado, cicioso e exibido, o escritor sabia não ter nada de "aceitável" aos olhos dos americanos típicos do meio-oeste; menos ainda, provavelmente, aos olhos de um metodista abstêmio como o sr. Clutter, chefe da família assassinada.
Vem daí o grande tema moral do filme: o das relações de identificação entre Capote e um dos assassinos, o moreno, musculoso, neurótico e articulado Perry Smith (Clifton Collins). A sutileza do diretor (estreante na ficção) Bennet Miller, do roteirista Dan Futterman e de Philip Seymour Hofmann se combinam nesse caso, justificando a tripla indicação para o Oscar. Por vezes, é um discreto tique nervoso no nariz do escritor que encontra resposta no piscar de olhos do assassino; em outras situações, que vão ficando mais dolorosas à medida que se aproxima a data da execução, é um jogo de subserviência mútua que se explicita.
Capote precisa de Perry para que este lhe conte os detalhes do assassinato; Perry precisa de Capote para se livrar da forca. O pior de tudo é que o livro, afinal, estava praticamente pronto, e Capote ardia de vontade de publicá-lo; mas só a morte dos criminosos o autorizaria a colocar o ponto final de sua história.
Eis um bloqueio que independe, para ser superado, da vontade de um escritor. Ou não? O famoso poder de vida ou morte que o autor tem sobre seus personagens se torna terrivelmente literal quando acontece de estes personagens serem, afinal de contas, indivíduos reais. E poucos filmes conseguem, como "Capote", transmitir a sensação da verdade complexa que existe por trás de caracteres nítidos, apresentados com economia, mas sem simplificação.


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