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CRÍTICA
Cinismo assinala abismo entre humanismo literário e vida real
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Um dos muitos méritos de
"Capote", que entra em cartaz nesta sexta, é o de evitar o conhecido clichê hollywoodiano
dos escritores empacados no processo de criação. Pode ser Virginia Woolf ("As Horas", de Stephen Daldry) ou Lillian Hellman
("Julia", de Fred Zinnemann),
tanto faz: invariavelmente, papéis
são arremessados ao lixo, cigarros
se consomem, cabeças se coçam e
gritos de agonia se emitem -antes, é claro, do sucesso que chega
com a publicação da obra-prima.
Bloqueios desse tipo não tinham como acontecer quando
Truman Capote (1924-1984) escreveu "A Sangue Frio". Do ano
de 1959, quando o já famoso escritor e roteirista leu no "New York
Times" a notícia do assassinato de
uma família inteira na minúscula
localidade de Holcomb, Kansas,
até 1965, quando seu magistral
"romance de não-ficção" sobre o
crime foi finalmente publicado,
Truman Capote comportou-se
com determinação literária e
grande garra jornalística.
A certeza com relação aos próprios objetivos e a indiferença
moral quanto aos meios de obtê-los -ao lado de imensas quantidades de ternura, talento, fragilidade e arrogância- fazem de
Truman Capote um personagem
marcante, a que a interpretação
de Philip Seymour Hoffman
-indicado ao Oscar- serve com
espantosa, mediúnica exatidão.
Uma das cenas mais bonitas do
filme justamente explora as ambiguidades morais do autor -e
também põe em cena outro contraste, o do poder da palavra escrita face à eloquência da imagem
cinematográfica. É quando Truman Capote está num teatro, nervosíssimo, diante de uma chique
platéia nova-iorquina, e começa a
ler em voz alta trechos de seu romance, ainda inédito. Passa um
tempo, e a câmera vai mostrando
os muitos rostos, as expressões silenciosas e emocionadas de quem
ouvia a narração. Naquele momento, uma forte corrente de comunhão humana se dá entre autor e público, mas é como se também se estendesse entre vítimas e
criminosos, uma vez que, pela arte do escritor, a substância comum a todas as pessoas parece
aos poucos emergir.
Um corte, e vemos o escritor entre seus amigos, nos camarins, celebrando com bons goles de
"scotch" o sucesso do evento; cinismo, deboche e sarcasmo desenfreados assinalam rapidamente o abismo entre humanismo literário e vida real.
Esse abismo será explorado de
várias formas e com muitas nuances ao longo do filme. Nas primeiras cenas, tudo é feito para que
antipatizemos com o tipo esnobe
de Capote; mas o poder extravagante de sua inteligência não tem
como não cativar o espectador, do
mesmo modo que fascina a provinciana comunidade de Holcomb, pouquíssimo preparada
para o estrelismo e as bichices de
Capote. Não fosse o contraponto
de normalidade proporcionado
por uma amiga, a modesta escritora Harper Lee (Catherine Keener), que o acompanhava na viagem, a reportagem de Capote
nunca teria sido feita.
Egocêntrico, afetado, cicioso e
exibido, o escritor sabia não ter
nada de "aceitável" aos olhos dos
americanos típicos do meio-oeste; menos ainda, provavelmente,
aos olhos de um metodista abstêmio como o sr. Clutter, chefe da
família assassinada.
Vem daí o grande tema moral
do filme: o das relações de identificação entre Capote e um dos assassinos, o moreno, musculoso,
neurótico e articulado Perry
Smith (Clifton Collins). A sutileza
do diretor (estreante na ficção)
Bennet Miller, do roteirista Dan
Futterman e de Philip Seymour
Hofmann se combinam nesse caso, justificando a tripla indicação
para o Oscar. Por vezes, é um discreto tique nervoso no nariz do
escritor que encontra resposta no
piscar de olhos do assassino; em
outras situações, que vão ficando
mais dolorosas à medida que se
aproxima a data da execução, é
um jogo de subserviência mútua
que se explicita.
Capote precisa de Perry para
que este lhe conte os detalhes do
assassinato; Perry precisa de Capote para se livrar da forca. O pior
de tudo é que o livro, afinal, estava
praticamente pronto, e Capote ardia de vontade de publicá-lo; mas
só a morte dos criminosos o autorizaria a colocar o ponto final de
sua história.
Eis um bloqueio que independe,
para ser superado, da vontade de
um escritor. Ou não? O famoso
poder de vida ou morte que o autor tem sobre seus personagens se
torna terrivelmente literal quando acontece de estes personagens
serem, afinal de contas, indivíduos reais. E poucos filmes conseguem, como "Capote", transmitir
a sensação da verdade complexa
que existe por trás de caracteres
nítidos, apresentados com economia, mas sem simplificação.
Avaliação:
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