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CARTAS DA EUROPA
A vitória de David Irving
JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA
David Irving, que nenhum
historiador leva a sério, foi
agora condenado a três anos de
prisão. Em 1989, o repulsivo Irving declarou em solo austríaco
que o Holocausto era um mito.
Na Áustria, onde a culpa do passado continua a fazer estragos no
presente, esse tipo de circo costuma dar cadeia. Aconteceu. David
Irving regressou ao país, as autoridades capturaram o homem e o
tribunal de Viena fez o resto.
Consta que, na prisão, Irving
encontrou os seus próprios livros,
para embaraço e estupefação dos
austríacos. Pequeno acidente de
percurso. Na verdade, ninguém se
comoveu com a alegada conversão da criatura, em pleno julgamento, à verdade e ao horror do
Terceiro Reich. Pior: eu suspeito
que Irving regressou de propósito
à Áustria, como um velho senil
que gosta de abrir o casaco para
as mocinhas do parque. E que deseja intimamente ser apanhado
no ato. As mentiras de Irving são,
digamos, a mais fétida da sua genitália privada.
Convém notar que o caso David
Irving não constitui uma novidade. Em 1980, a Europa enfrentou
fenômeno igual: quando Robert
Faurisson, uma espécie de predecessor espiritual onde Irving mamou forte, declarou numa entrevista radiofônica, em Paris, precisamente o mesmo. Para Faurisson, o Holocausto era um mito e
alguns historiadores -como
León Poliakov- persistiam em
suas fantasias, mentindo e deturpando para construir uma tragédia judaica que jamais existira. A
Justiça francesa não gostou do
que ouviu. Poliakov também não.
Faurisson foi condenado e, naturalmente, a condenação permitiu
que um idiota imoral fosse subitamente transformado em mais
um mártir da liberdade de expressão. Como usualmente acontece.
Eis o verdadeiro problema: a
única forma de responder a um
negacionista do Holocausto, por
mais sórdido que ele seja, não
passa por uma condenação em
tribunal. Nenhuma sociedade sobrevive criminalizando todas as
opiniões grosseiras, fraudulentas
ou ofensivas. Pelo contrário: criminalizar o discurso acaba por
conferir ao orador uma dignidade que ele não merece. A única
forma de responder aos negacionistas passa pelo silêncio civilizado -ou, como aconteceu com Irving, pela crítica intelectual, desmontando as suas teses e mostrando ao mundo as fraudes em
que ele vive. E isso já aconteceu
há seis anos, num dos julgamentos mais célebres da década.
Em 1994, a historiadora americana Deborah Lipstadt publicou
"Denying the Holocaust: The
Growing Assault on Truth and
Memory" e incluiu Irving numa
lista de negacionistas célebres. Irving, num inusitado ataque de
probidade, não gostou da companhia e avançou para tribunal em
2000. Situação perversa: Lipstadt
teria que provar, em julgamento,
que Irving era um negacionista, o
que fatalmente implicava provar
que o Holocausto, na realidade,
existira. O caso proporcionou a
mais séria reflexão pública sobre
o negacionismo e o resultado dessa reflexão pode hoje ser encontrado em "Lying about Hitler:
History, Holocaust, and the David Irving Trial", o livro monumental do monumental Richard
J. Evans. Evans, testemunha na
audiência, professor em Cambridge e provavelmente a maior
autoridade mundial sobre o Terceiro Reich, desmontou, um a um,
com uma violência e precisão invulgares, todos os argumentos de
Irving, expondo as falsidades e as
propositadas deturpações da historiografia do homem. Falsidades
e deturpações que, no essencial,
seguem apenas o "cursus honorum" do negacionismo ortodoxo,
de que Faurisson foi um supremo
exemplo.
Depois do julgamento intelectual, que acabou por desmascarar
Irving, e depois do livro de Richard Evans, que repôs a verdade
dos fatos, o silêncio civilizado era
a única resposta possível. Enfiar
um lunático na cadeia não passa
de um insulto. Não para ele. Para
nós. Os lunáticos, por definição,
não se sentem insultados.
Colunista do jornal português "Expresso", entre outras publicações, João Pereira Coutinho passa a escrever toda
quarta-feira neste espaço
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