São Paulo, quarta-feira, 22 de fevereiro de 2006

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CARTAS DA EUROPA

A vitória de David Irving

JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA

David Irving, que nenhum historiador leva a sério, foi agora condenado a três anos de prisão. Em 1989, o repulsivo Irving declarou em solo austríaco que o Holocausto era um mito. Na Áustria, onde a culpa do passado continua a fazer estragos no presente, esse tipo de circo costuma dar cadeia. Aconteceu. David Irving regressou ao país, as autoridades capturaram o homem e o tribunal de Viena fez o resto.
Consta que, na prisão, Irving encontrou os seus próprios livros, para embaraço e estupefação dos austríacos. Pequeno acidente de percurso. Na verdade, ninguém se comoveu com a alegada conversão da criatura, em pleno julgamento, à verdade e ao horror do Terceiro Reich. Pior: eu suspeito que Irving regressou de propósito à Áustria, como um velho senil que gosta de abrir o casaco para as mocinhas do parque. E que deseja intimamente ser apanhado no ato. As mentiras de Irving são, digamos, a mais fétida da sua genitália privada.
Convém notar que o caso David Irving não constitui uma novidade. Em 1980, a Europa enfrentou fenômeno igual: quando Robert Faurisson, uma espécie de predecessor espiritual onde Irving mamou forte, declarou numa entrevista radiofônica, em Paris, precisamente o mesmo. Para Faurisson, o Holocausto era um mito e alguns historiadores -como León Poliakov- persistiam em suas fantasias, mentindo e deturpando para construir uma tragédia judaica que jamais existira. A Justiça francesa não gostou do que ouviu. Poliakov também não. Faurisson foi condenado e, naturalmente, a condenação permitiu que um idiota imoral fosse subitamente transformado em mais um mártir da liberdade de expressão. Como usualmente acontece.
Eis o verdadeiro problema: a única forma de responder a um negacionista do Holocausto, por mais sórdido que ele seja, não passa por uma condenação em tribunal. Nenhuma sociedade sobrevive criminalizando todas as opiniões grosseiras, fraudulentas ou ofensivas. Pelo contrário: criminalizar o discurso acaba por conferir ao orador uma dignidade que ele não merece. A única forma de responder aos negacionistas passa pelo silêncio civilizado -ou, como aconteceu com Irving, pela crítica intelectual, desmontando as suas teses e mostrando ao mundo as fraudes em que ele vive. E isso já aconteceu há seis anos, num dos julgamentos mais célebres da década.
Em 1994, a historiadora americana Deborah Lipstadt publicou "Denying the Holocaust: The Growing Assault on Truth and Memory" e incluiu Irving numa lista de negacionistas célebres. Irving, num inusitado ataque de probidade, não gostou da companhia e avançou para tribunal em 2000. Situação perversa: Lipstadt teria que provar, em julgamento, que Irving era um negacionista, o que fatalmente implicava provar que o Holocausto, na realidade, existira. O caso proporcionou a mais séria reflexão pública sobre o negacionismo e o resultado dessa reflexão pode hoje ser encontrado em "Lying about Hitler: History, Holocaust, and the David Irving Trial", o livro monumental do monumental Richard J. Evans. Evans, testemunha na audiência, professor em Cambridge e provavelmente a maior autoridade mundial sobre o Terceiro Reich, desmontou, um a um, com uma violência e precisão invulgares, todos os argumentos de Irving, expondo as falsidades e as propositadas deturpações da historiografia do homem. Falsidades e deturpações que, no essencial, seguem apenas o "cursus honorum" do negacionismo ortodoxo, de que Faurisson foi um supremo exemplo.
Depois do julgamento intelectual, que acabou por desmascarar Irving, e depois do livro de Richard Evans, que repôs a verdade dos fatos, o silêncio civilizado era a única resposta possível. Enfiar um lunático na cadeia não passa de um insulto. Não para ele. Para nós. Os lunáticos, por definição, não se sentem insultados.


Colunista do jornal português "Expresso", entre outras publicações, João Pereira Coutinho passa a escrever toda quarta-feira neste espaço

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