São Paulo, quarta-feira, 22 de fevereiro de 2006

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Filme faz retrato brutal das naturezas humana e animal

LESLIE FELPERIN
DO INDEPENDENT

"Grizzly Man", do diretor Werner Herzog, um documentário áspero ambientado em um extremo gelado do planeta e que oferece um retrato brutal das naturezas humana e animal, nem sequer entrou para a lista prévia do Oscar.
Digo a Herzog que estou surpresa por "Grizzly Man" [que será exibido no Festival de Documentários] nem sequer ter sido indicado. "Sua surpresa me lisonjeia", diz ele, rindo, mas o fato não o surpreendeu. Ele sabe que o filme não é o tipo de história enaltecedora, com temática ligada ao Holocausto ou reconfortadoramente liberal que os eleitores da Academia costumam premiar. Em lugar disso, é um filme complexo, que reúne imagens rodadas por Herzog e sua equipe com outras feitas pelo problemático Timothy Treadwell, que passou 13 verões acampado entre os ursos conhecidos como "grizzly bears", no parque Katmai, no Alasca.
Treadwell, antigo viciado que tinha dificuldade em enquadrar-se na sociedade, via os ursos como sua salvação e sua família substituta. Filmava os ursos, algumas raposas e ele mesmo, captando alguns momentos extraordinários de comportamento dos ursos e também muitas horas narcisistas. Nesses trechos, ele compartilha sua solidão com o espectador, divaga sobre os ursos e faz críticas a seus supostos inimigos na agência responsável pelos parques. Diante da câmera, apresentava-se como "guerreiro solitário" que defendia os ursos contra os caçadores ilegais, embora esse risco seja pequeno em Katmai.
Tão acostumados estavam Treadwell e sua namorada, Amie Huguenard, a pegar a câmera quando algum urso se aproximava deles, que um deles já tinha ligado a câmera, mas ainda não retirara a capa da lente, quando um urso atacou, matou e comeu os dois em outubro de 2003.
O espectador é informado sobre a maneira como Treadwell morreu já no início do filme, o que reveste de ironia trágica as imagens dele dizendo que "morreria por esses ursos". O drama consiste em assistir a ele desenrolando sua história, enquanto entrevistados explicam a Herzog a seqüência de erros (como chegar perto demais dos ursos) que levaram às mortes.
"O que me assombra é que, nos rostos de todos os ursos que Treadwell filmou, não discirno nenhuma proximidade, nenhuma compreensão ou misericórdia", diz Herzog, enquanto na tela se vê a imagem congelada do rosto de um urso, possivelmente aquele que acabaria por matar Treadwell. "Vejo apenas a indiferença avassaladora da natureza. Para mim, não existe um mundo secreto dos ursos. Esse olhar vazio deles revela apenas um interesse semi-entediado por comida."
Um dos momentos mais poderosos do filme é quando Herzog, com um fone, ouve uma gravação da morte de Treadwell e dos gritos de Amie, observado por Jewel Palovak, amiga e herdeira de Treadwell. Em lugar de tocar a gravação para o público, Herzog diz a Palovak que ela deveria destruir a fita. "Foi assustador porque ficou claro de imediato que, em primeiro lugar, não estávamos fazendo um "snuff movie" [filme em que as cenas de morte são reais], e, em segundo, que existe algo que é a dignidade e privacidade da morte das pessoas", diz. "Ficou claro de imediato que isso não faria parte de meu filme."


Tradução Clara Allain

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