São Paulo, quarta-feira, 22 de fevereiro de 2006

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COMENTÁRIO

Uma solidão multiplicada por 73 mil

NOEMI JAFFE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Eu também o quê? O nome dessa banda ao mesmo tempo me inclui e me exclui. O "me exclui" é fácil: nunca escrevi nem vou escrever "d+", não escrevo "bj" no lugar de beijo nem "vc" no lugar de você. Além disso, minha reação imediata a alguém que eu não conheço e que me diz "você também" é dizer: "Eu não!".
Mas acontece que eles eram gigantes dizendo que "eu também" e ali, no meio da multidão, eu achava que eles tinham razão. Na pista, sozinha, me senti ao mesmo tempo deslocada e livre. Deslocada por não ter vivido muitas situações como essa, por quase não conhecer as músicas. E livre exatamente pelos mesmos motivos.
Elias Canetti conta que, quando esteve em Marrakech, fez questão de não aprender a língua local, para poder ouvir livremente e para entregar-se ao desconhecido: "O que é a língua? O que ela esconde? O que nos rouba? Não quis perder nada do poder exótico dos seus gritos. Queria ser atingido por seus gritos, tal como eles eram, sem esquecê-los devido a um saber artificial e insuficiente".
Eu também queria ver, talvez sem entender, aquela multidão chorando, berrando, se abraçando, mesmo sem falar aquela língua. E, ao mesmo tempo queria pertencer a alguma coisa. Aos poucos, com o volume de gente, de sons, de luz, percebi que pertencia, sim. Talvez, se estivesse com alguém, não conseguisse fazer parte da massa. Só o que me permitia fazer parte era minha solidão e agradeci por não estar acompanhada.
Mesmo que brevemente, entrei na experiência coletiva e deixei que as batidas da banda entrassem em sintonia com as minhas e me senti como parte de uma coisa que, naquele momento, parecia um corpo só. Não fazia muita diferença para mim que fosse o U2 ou outra banda. Mas o entusiasmo das pessoas com aquele "deus" fazia toda a diferença. E eu gostei muito.
Mas acontece que o superego é teimoso e o efeito passou rápido. Depois de um tempo eu já não sabia se estava entediada ou eufórica e comecei a olhar em volta, mais à distância. Vi seqüências de camisetas de "firmas", lounges estroboscópicos, mulheres recolhendo o lixo e pensei se aquilo era mesmo uma experiência coletiva ou se não era só uma experiência individual e solitária multiplicada por 73 mil. Mas uma garota sentada sozinha ao meu lado, no meio-fio atrás do gol, cantando todas as músicas de cor e chorando, descalça, me fez ver que não era só isso. Não é fácil simplificar, nem pertencer. Ou não pertencer.
Queria perguntar para ela: "Para onde vão tuas sensações? Para qual memória? Onde você vai guardar o som dessa bateria?" Talvez amanhã ele se transforme, em mim, numa ruga, num cabelo branco e, nela, num ato falho ou num sonho. Não sei onde guardar sensações, mas, ali, no meio do show, por alguns instantes, achei que o eu inteiro é só a extensão de uma sensação ampliada. E, durante esses momentos, entendi porque "eu também".


NOEMI JAFFE é autora de "Folha Explica Macunaíma" (Publifolha) e "Todas as Coisas Pequenas" (Editora Hedra).

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