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COMENTÁRIO
Uma solidão multiplicada por 73 mil
NOEMI JAFFE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Eu também o quê? O
nome dessa banda ao
mesmo tempo me inclui e
me exclui. O "me exclui" é
fácil: nunca escrevi nem vou
escrever "d+", não escrevo
"bj" no lugar de beijo nem
"vc" no lugar de você. Além
disso, minha reação imediata a alguém que eu não conheço e que me diz "você
também" é dizer: "Eu não!".
Mas acontece que eles
eram gigantes dizendo que
"eu também" e ali, no meio
da multidão, eu achava que
eles tinham razão. Na pista,
sozinha, me senti ao mesmo
tempo deslocada e livre.
Deslocada por não ter vivido
muitas situações como essa,
por quase não conhecer as
músicas. E livre exatamente
pelos mesmos motivos.
Elias Canetti conta que,
quando esteve em Marrakech, fez questão de não
aprender a língua local, para
poder ouvir livremente e para entregar-se ao desconhecido: "O que é a língua? O
que ela esconde? O que nos
rouba? Não quis perder nada
do poder exótico dos seus
gritos. Queria ser atingido
por seus gritos, tal como eles
eram, sem esquecê-los devido a um saber artificial e insuficiente".
Eu também queria ver, talvez sem entender, aquela
multidão chorando, berrando, se abraçando, mesmo
sem falar aquela língua. E, ao
mesmo tempo queria pertencer a alguma coisa. Aos
poucos, com o volume de
gente, de sons, de luz, percebi que pertencia, sim. Talvez,
se estivesse com alguém, não
conseguisse fazer parte da
massa. Só o que me permitia
fazer parte era minha solidão e agradeci por não estar
acompanhada.
Mesmo que brevemente,
entrei na experiência coletiva e deixei que as batidas da
banda entrassem em sintonia com as minhas e me senti como parte de uma coisa
que, naquele momento, parecia um corpo só. Não fazia
muita diferença para mim
que fosse o U2 ou outra banda. Mas o entusiasmo das
pessoas com aquele "deus"
fazia toda a diferença. E eu
gostei muito.
Mas acontece que o superego é teimoso e o efeito passou rápido. Depois de um
tempo eu já não sabia se estava entediada ou eufórica e
comecei a olhar em volta,
mais à distância. Vi seqüências de camisetas de "firmas", lounges estroboscópicos, mulheres recolhendo o
lixo e pensei se aquilo era
mesmo uma experiência coletiva ou se não era só uma
experiência individual e solitária multiplicada por 73
mil. Mas uma garota sentada
sozinha ao meu lado, no
meio-fio atrás do gol, cantando todas as músicas de
cor e chorando, descalça, me
fez ver que não era só isso.
Não é fácil simplificar, nem
pertencer. Ou não pertencer.
Queria perguntar para ela:
"Para onde vão tuas sensações? Para qual memória?
Onde você vai guardar o
som dessa bateria?" Talvez
amanhã ele se transforme,
em mim, numa ruga, num
cabelo branco e, nela, num
ato falho ou num sonho.
Não sei onde guardar sensações, mas, ali, no meio do
show, por alguns instantes,
achei que o eu inteiro é só a
extensão de uma sensação
ampliada. E, durante esses
momentos, entendi porque
"eu também".
NOEMI JAFFE é autora de "Folha Explica Macunaíma" (Publifolha) e
"Todas as Coisas Pequenas" (Editora Hedra).
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