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MARCELO COELHO
O menino Drummond e as superbabás
Walt Disney inventou o
Zé Carioca no início da
década de 1940, mas antes disso já
apareciam papagaios vestidos de
gente nas histórias em quadrinhos brasileiras. Um desses papagaios se chamava Faísca e foi
criado por Luiz Sá (1907-1980),
nas páginas da revista infantil "O
Tico-Tico".
A primeira edição do "Tico-Tico" apareceu em outubro de 1905,
e logo a revista ganharia leitores
ilustres: do menino Carlos Drummond de Andrade, que anos mais
tarde lhe prestaria homenagem
em dois poemas de "Boitempo",
ao provecto Ruy Barbosa, que segundo reza a lenda não se envergonhava de citar ensinamentos
do "Tico-Tico" na tribuna do Senado.
Esse avô dos atuais gibis foi publicado regularmente até 1957 e
teve entre seus colaboradores figuras históricas como Ângelo
Agostini -primeiro chargista e
quadrinhista brasileiro, com o
"Diabo Coxo", de 1864- e J. Carlos, ilustrador e caricaturista de
traço estilizadíssimo, que fez muito para criar a imagem que até
hoje temos do Brasil e do Carnaval dos anos 20 e 30.
Mas voltando ao papagaio
Faísca. Descrevo uma aventura
dele, recolhida em "O Tico-Tico:
Cem Anos de Revista", pequena
antologia organizada por Ezequiel Azevedo para a editora Via
Lettera. Assinalo, de passagem,
que outro livro sobre o "Tico-Tico" acaba de sair, pela editora
Opera Graphica; encadernado,
em grande formato, tem vários
artigos e um fac-símile do primeiro número da revistinha.
"Faísca e o Menino Chorão" é
uma história simples, em quatro
quadrinhos, sem palavras. O menino, um daqueles tipos carequinhas que eram comuns na época,
chora sem motivo no primeiro
quadro. Faísca, o papagaio de camisa vermelha e calça curta preta, arregala os olhos (ornados
com os típicos cílios de melindrosa, à maneira de Betty Boop). Sua
cabeça se cerca de pontos de exclamação: ele teve uma idéia. E
então a história chega a seu desfecho: com cara de esperto, Faísca
nos mostra o menino com dois esparadrapos grudados na boca.
Não sei se as crianças de 1930
achavam graça nessas histórias.
Espero que não; é provável que
sim. A dureza e a maquinal simplicidade dos vários exemplos reproduzidos no livro de Ezequiel
Azevedo traçam um retrato sinistro da infância de antigamente.
Eis outra história, desta vez tendo como protagonista Lamparina, cujo nome já é indicativo das
ironias racistas correntes na época: trata-se, como não deixa de
frisar o texto, de uma "negrinha".
Seu grande pecado é o de fazer caretas sem parar. "Até para a lua,
lá no céu, Lamparina faz caretas".
Vem o castigo, inevitável. "A
lua não teve dúvida: passou a
mão pelo céu, raspou uma porção
de estrelas pontudas, e zás! sacudiu um punhadão delas em cima
de Lamparina. A negrinha correu
e as estrelas, com as suas pontas
finas, se foram enterrando nas
costas da fugitiva. (...) Quanto
mais corria, mais as estrelas enterravam. E os garotos da rua,
vendo aquilo, davam gargalhadas, e gritavam: -Porco-espinho! Porco-espinho! É nisso que
dá a gente ser careteira".
Chiquinho e Azeitona -personagens clássicos da revista- não
conhecem melhor sorte. A estrutura dessas histórias, como as de
Juca e Chico (Wilhelm Busch) ou
dos Sobrinhos do Capitão (Rudolph Dirks), é sempre a mesma.
Uma travessura qualquer, supostamente engraçada, conhece no
último quadrinho sua devida punição.
Broncas, surras e purgantes
comparecem no desfecho apenas
para manter o propósito "educativo", das histórias. Sem dúvida, o
interesse do pequeno leitor concentrava-se na representação
imaginária da travessura; a
transgressão, proibida na prática,
ganhava caprichados desenhos,
com impressão a quatro cores.
Vai nesse sentido a observação
de Carlos Drummond de Andrade, numa crônica que Ezequiel
Azevedo reproduz. ""O Tico-Tico"
era de fato a segunda vida dos
meninos do começo do século, o
cenário maior em que nos inseríamos para fugir à condição escrava de falsos marinheiros, trajados dominicalmente com o uniforme porém sem navio que nos
subtraísse ao poderio dos pais,
dos tios e da escola."
Poderio dos pais? Dos tios? Da
escola? Cem anos depois do surgimento de "O Tico-Tico", a realidade é bem outra. Não tive nervos
para assistir a mais do que cinco
minutos de "Super Nanny", um
programa exibido na TV a cabo
em vários horários. Crianças de
dois ou três anos urram, batem,
quebram, cospem, xingam e barbarizam, levando pais ao desespero, até que uma especialista
-a superbabá do título- é chamada a intervir. Com suas poucas
e precisas instruções, a paz magicamente se estabelece naqueles
lares devastados.
O programa não difere, na verdade, de outros casos de "transformação" que alguns canais da
TV a cabo se especializaram em
relatar: gordos que emagrecem,
casas bagunçadas que viram um
brinco, ou caminhoneiros que se
convertem ao mundo fashion.
Virou clichê dizer que as crianças, hoje em dia, precisam de "limites". Uma coisa instrutiva,
contudo, seria comparar as historinhas infantis antigas com o
mundo dos super-heróis e vilões
em que as crianças de hoje estão
mergulhadas.
Se as historinhas antigas encenavam travessuras e desobediências irrealizáveis na prática, parece claro que hoje em dia, quando
Super-Homem e Hulk ocupam a
mente de crianças de três anos, o
que está em jogo não é mais uma
fantasia de transgressão, mas de
onipotência.
Talvez corresponda à fantasia
de onipotência dos próprios pais
-que querem a independência
de solteiros no cotidiano do casamento, a plena atividade profissional enquanto cuidam de crianças de colo, e assim por diante.
Para tantos Super-Homens e Mulheres-Maravilha em ação, natural que a TV tivesse de criar a sua Superbabá.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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