São Paulo, quarta-feira, 22 de fevereiro de 2006

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MARCELO COELHO

O menino Drummond e as superbabás

Walt Disney inventou o Zé Carioca no início da década de 1940, mas antes disso já apareciam papagaios vestidos de gente nas histórias em quadrinhos brasileiras. Um desses papagaios se chamava Faísca e foi criado por Luiz Sá (1907-1980), nas páginas da revista infantil "O Tico-Tico".
A primeira edição do "Tico-Tico" apareceu em outubro de 1905, e logo a revista ganharia leitores ilustres: do menino Carlos Drummond de Andrade, que anos mais tarde lhe prestaria homenagem em dois poemas de "Boitempo", ao provecto Ruy Barbosa, que segundo reza a lenda não se envergonhava de citar ensinamentos do "Tico-Tico" na tribuna do Senado.
Esse avô dos atuais gibis foi publicado regularmente até 1957 e teve entre seus colaboradores figuras históricas como Ângelo Agostini -primeiro chargista e quadrinhista brasileiro, com o "Diabo Coxo", de 1864- e J. Carlos, ilustrador e caricaturista de traço estilizadíssimo, que fez muito para criar a imagem que até hoje temos do Brasil e do Carnaval dos anos 20 e 30.
Mas voltando ao papagaio Faísca. Descrevo uma aventura dele, recolhida em "O Tico-Tico: Cem Anos de Revista", pequena antologia organizada por Ezequiel Azevedo para a editora Via Lettera. Assinalo, de passagem, que outro livro sobre o "Tico-Tico" acaba de sair, pela editora Opera Graphica; encadernado, em grande formato, tem vários artigos e um fac-símile do primeiro número da revistinha.
"Faísca e o Menino Chorão" é uma história simples, em quatro quadrinhos, sem palavras. O menino, um daqueles tipos carequinhas que eram comuns na época, chora sem motivo no primeiro quadro. Faísca, o papagaio de camisa vermelha e calça curta preta, arregala os olhos (ornados com os típicos cílios de melindrosa, à maneira de Betty Boop). Sua cabeça se cerca de pontos de exclamação: ele teve uma idéia. E então a história chega a seu desfecho: com cara de esperto, Faísca nos mostra o menino com dois esparadrapos grudados na boca.
Não sei se as crianças de 1930 achavam graça nessas histórias. Espero que não; é provável que sim. A dureza e a maquinal simplicidade dos vários exemplos reproduzidos no livro de Ezequiel Azevedo traçam um retrato sinistro da infância de antigamente.
Eis outra história, desta vez tendo como protagonista Lamparina, cujo nome já é indicativo das ironias racistas correntes na época: trata-se, como não deixa de frisar o texto, de uma "negrinha". Seu grande pecado é o de fazer caretas sem parar. "Até para a lua, lá no céu, Lamparina faz caretas".
Vem o castigo, inevitável. "A lua não teve dúvida: passou a mão pelo céu, raspou uma porção de estrelas pontudas, e zás! sacudiu um punhadão delas em cima de Lamparina. A negrinha correu e as estrelas, com as suas pontas finas, se foram enterrando nas costas da fugitiva. (...) Quanto mais corria, mais as estrelas enterravam. E os garotos da rua, vendo aquilo, davam gargalhadas, e gritavam: -Porco-espinho! Porco-espinho! É nisso que dá a gente ser careteira".
Chiquinho e Azeitona -personagens clássicos da revista- não conhecem melhor sorte. A estrutura dessas histórias, como as de Juca e Chico (Wilhelm Busch) ou dos Sobrinhos do Capitão (Rudolph Dirks), é sempre a mesma. Uma travessura qualquer, supostamente engraçada, conhece no último quadrinho sua devida punição.
Broncas, surras e purgantes comparecem no desfecho apenas para manter o propósito "educativo", das histórias. Sem dúvida, o interesse do pequeno leitor concentrava-se na representação imaginária da travessura; a transgressão, proibida na prática, ganhava caprichados desenhos, com impressão a quatro cores.
Vai nesse sentido a observação de Carlos Drummond de Andrade, numa crônica que Ezequiel Azevedo reproduz. ""O Tico-Tico" era de fato a segunda vida dos meninos do começo do século, o cenário maior em que nos inseríamos para fugir à condição escrava de falsos marinheiros, trajados dominicalmente com o uniforme porém sem navio que nos subtraísse ao poderio dos pais, dos tios e da escola."
Poderio dos pais? Dos tios? Da escola? Cem anos depois do surgimento de "O Tico-Tico", a realidade é bem outra. Não tive nervos para assistir a mais do que cinco minutos de "Super Nanny", um programa exibido na TV a cabo em vários horários. Crianças de dois ou três anos urram, batem, quebram, cospem, xingam e barbarizam, levando pais ao desespero, até que uma especialista -a superbabá do título- é chamada a intervir. Com suas poucas e precisas instruções, a paz magicamente se estabelece naqueles lares devastados.
O programa não difere, na verdade, de outros casos de "transformação" que alguns canais da TV a cabo se especializaram em relatar: gordos que emagrecem, casas bagunçadas que viram um brinco, ou caminhoneiros que se convertem ao mundo fashion.
Virou clichê dizer que as crianças, hoje em dia, precisam de "limites". Uma coisa instrutiva, contudo, seria comparar as historinhas infantis antigas com o mundo dos super-heróis e vilões em que as crianças de hoje estão mergulhadas.
Se as historinhas antigas encenavam travessuras e desobediências irrealizáveis na prática, parece claro que hoje em dia, quando Super-Homem e Hulk ocupam a mente de crianças de três anos, o que está em jogo não é mais uma fantasia de transgressão, mas de onipotência.
Talvez corresponda à fantasia de onipotência dos próprios pais -que querem a independência de solteiros no cotidiano do casamento, a plena atividade profissional enquanto cuidam de crianças de colo, e assim por diante. Para tantos Super-Homens e Mulheres-Maravilha em ação, natural que a TV tivesse de criar a sua Superbabá.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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