São Paulo, sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

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Crítica/"Senhores do Crime"

Mutante, cineasta retrata um mundo em que a exceção substitui a regra

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

A notícia inquietante é que David Cronenberg mudou. Desde "Marcas da Violência", seu penúltimo filme, estaria ele mais próximo do "mainstream"? Afinal, parecem ter desaparecido de seu estilo velhas bizarrices, como mutantes, vírus transgressores e que tais. Essa passagem pode suscitar, de imediato, duas reações. Para quem vê a figura do autor como uma doença inscrita na bela impessoalidade da indústria cultural, é motivo de exaltação. Aí está. Até ele, David Cronenberg, esqueceu seus princípios e passou a fazer filmes sadiamente violentos.
Já para quem cultiva e cultua a figura do autor, a inquietação é de outra ordem. Se D.C. é o mesmo, por que essa mudança em sua obra? Ele não está nos traindo com a indústria. No entanto, é como se ele tivesse adquirido uma outra identidade, que nos dificulta a vida.
Talvez as duas reações se justifiquem, talvez nenhuma delas. Com efeito, este é o segundo filme seguido de D.C. em que trabalhamos com um personagem duplo (e o mesmo ator, Viggo Mortensen). Desta vez, ele é Nikolai e trabalha com Kirill (Vincent Cassel), filho demente do chefão Semyon (Armin Mueller-Stahl).
Alguns elementos remetem ao velho David, a começar pelo estranho brilho nos olhos de Semyon, que fazem lembrar mais um robô (ou um mutante?) do que um humano. Os usos e costumes da máfia russa também podem nos deixar em dúvida sobre a humanidade dos personagens. Não se trata de pequenos (ou grandes) desvios criminais. Estamos às voltas com seres francamente monstruosos. É quando o espectador se pergunta: mas será que essa gente não são os mesmos mutantes de outros tempos, só que num estágio em que a mutação já se realizou plenamente?
Ainda assim, as diferenças serão evidentes. Os antigos personagens passavam por mutações que envolviam, de um modo ou de outro, uma crença na ciência, no devir humano. Eles se consideravam o caminho do futuro.
Os personagens de agora não são nada disso. Eles podem ter uma natureza dupla, mas tudo o que podem pretender é se acomodar à sociedade que os acolhe. Eles o fazem com tal intensidade que sua dupla natureza quase desaparece. Quase.
É como se a mutação não se chegasse a terminar, dando lugar não propriamente a pessoas com dupla natureza, mas a tipos que não será exagero chamar de esquizofrênicos: são dois, mas nem podem perceber que são. A aberração já não parece ser uma exceção no mundo. Ela tornou-se a norma.
Essa é a grande mudança no cinema mais recente de Cronenberg. Se, até alguns anos atrás, ele podia chamar nossa atenção para um mundo em que a realidade foge ao controle ("eXistenz", 1999), agora parece nos falar de um tempo em que a irrealidade busca seu lugar no mundo real, onde robôs já não precisam ser robôs, porque se confundem com qualquer pessoa normal.
Ou, para ser bem sucinto: D.C. mudou, sim, mas não para ceder à indústria, e sim para falar de um novo século, inquietante como o que passou (e que foi tão marcado pelos filmes de D.C.), mas diferente.


SENHORES DO CRIME
Produção:
EUA/Canadá/Inglaterra/2007
Direção: David Cronenberg
Com: Viggo Mortensen, Naomi Watts e Vincent Cassel
Onde: estréia hoje nos cines Bristol, Eldorado e circuito
Avaliação: ótimo


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