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Crítica/"Senhores do Crime"
Mutante, cineasta retrata um mundo em que a exceção substitui a regra
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
A notícia inquietante é
que David Cronenberg
mudou. Desde "Marcas
da Violência", seu penúltimo
filme, estaria ele mais próximo
do "mainstream"? Afinal, parecem ter desaparecido de seu estilo velhas bizarrices, como
mutantes, vírus transgressores
e que tais. Essa passagem pode
suscitar, de imediato, duas reações. Para quem vê a figura do
autor como uma doença inscrita na bela impessoalidade da
indústria cultural, é motivo de
exaltação. Aí está. Até ele, David Cronenberg, esqueceu seus
princípios e passou a fazer filmes sadiamente violentos.
Já para quem cultiva e cultua
a figura do autor, a inquietação
é de outra ordem. Se D.C. é o
mesmo, por que essa mudança
em sua obra? Ele não está nos
traindo com a indústria. No entanto, é como se ele tivesse adquirido uma outra identidade,
que nos dificulta a vida.
Talvez as duas reações se justifiquem, talvez nenhuma delas. Com efeito, este é o segundo filme seguido de D.C. em
que trabalhamos com um personagem duplo (e o mesmo
ator, Viggo Mortensen). Desta
vez, ele é Nikolai e trabalha
com Kirill (Vincent Cassel), filho demente do chefão Semyon
(Armin Mueller-Stahl).
Alguns elementos remetem
ao velho David, a começar pelo
estranho brilho nos olhos de
Semyon, que fazem lembrar
mais um robô (ou um mutante?) do que um humano. Os
usos e costumes da máfia russa
também podem nos deixar em
dúvida sobre a humanidade dos
personagens. Não se trata de
pequenos (ou grandes) desvios
criminais. Estamos às voltas
com seres francamente monstruosos. É quando o espectador
se pergunta: mas será que essa
gente não são os mesmos mutantes de outros tempos, só que
num estágio em que a mutação
já se realizou plenamente?
Ainda assim, as diferenças
serão evidentes. Os antigos
personagens passavam por
mutações que envolviam, de
um modo ou de outro, uma
crença na ciência, no devir humano. Eles se consideravam o
caminho do futuro.
Os personagens de agora não
são nada disso. Eles podem ter
uma natureza dupla, mas tudo
o que podem pretender é se
acomodar à sociedade que os
acolhe. Eles o fazem com tal intensidade que sua dupla natureza quase desaparece. Quase.
É como se a mutação não se
chegasse a terminar, dando lugar não propriamente a pessoas
com dupla natureza, mas a tipos que não será exagero chamar de esquizofrênicos: são
dois, mas nem podem perceber
que são. A aberração já não parece ser uma exceção no mundo. Ela tornou-se a norma.
Essa é a grande mudança no
cinema mais recente de Cronenberg. Se, até alguns anos
atrás, ele podia chamar nossa
atenção para um mundo em
que a realidade foge ao controle
("eXistenz", 1999), agora parece nos falar de um tempo em
que a irrealidade busca seu lugar no mundo real, onde robôs
já não precisam ser robôs, porque se confundem com qualquer pessoa normal.
Ou, para ser bem sucinto:
D.C. mudou, sim, mas não para
ceder à indústria, e sim para falar de um novo século, inquietante como o que passou (e que
foi tão marcado pelos filmes de
D.C.), mas diferente.
SENHORES DO CRIME
Produção: EUA/Canadá/Inglaterra/2007
Direção: David Cronenberg
Com: Viggo Mortensen, Naomi Watts e Vincent Cassel
Onde: estréia hoje nos cines Bristol,
Eldorado e circuito
Avaliação: ótimo
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