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ANTONIO CICERO
O moderno e o pré-moderno
O homem moderno, faustiano, não conhece limites; em princípio, tudo lhe é possível
QUALQUER HOMEM moderno,
medianamente culto, e que
viva numa sociedade aberta,
consideraria intolerável que lhe fosse negada a perspectiva de ascensão
social, de viajar, de se mudar ou de
mudar de profissão.
Naturalmente, o fato de que o homem moderno não possa admitir
tal imobilidade não significa que ele
seja mais feliz -no sentido de mais
contente- do que o homem pré-moderno. Ao contrário: quando
nem a possibilidade de mudança,
nem o suicídio são concebíveis, não
há alternativa senão contentar-se
com o que se é e o que se tem.
Para o homem que nasceu em determinada casta, não existe a possibilidade, nem em pensamento, de
mudar para outra. A casta em que
nasceu faz parte do seu ser tanto
quanto a família à qual pertence ou
o seu próprio corpo; e é desse modo
também que ele pertence à religião
em que nasceu. Sua vida possui, portanto, uma estabilidade social impensável para o homem moderno.
Logo, tal homem é contente, no sentido de ser livre da frustração de
querer ser, ter ou saber mais do que
aquilo que supõe convir a quem nasceu em sua casta.
Já o homem moderno, faustiano,
não conhece limites pré-estabelecidos. Em princípio, tudo lhe é possível. E não é apenas de maneira abstrata que ele pressente as infinitas
possibilidades de transformação da
sua vida, mas elas lhe são mostradas
constante e concretamente através
do cinema, da televisão, da internet,
da cidade, das vitrines, do teatro, dos
jornais e revistas, dos livros etc.
Ora, sendo infinitas as suas possibilidades e finita a sua realidade, o
homem moderno não pode deixar
de conhecer intimamente a frustração, ao passo que mal conhece a segurança da estabilidade social ou a
felicidade do contentamento. Isso
não significa necessariamente que
ele inveje o homem pré-moderno.
O Fernando Pessoa de "Mensagem", por exemplo, afirma a superioridade do seu espírito moderno
nas palavras: "Triste de quem é feliz!
/ Vive porque a vida dura. / Nada na
alma lhe diz / Mais que a lição da
raiz / Ter por vida a sepultura".
Mas nem todos pensam assim e,
para muitos dos nossos contemporâneos, são sobretudo a instabilidade e as múltiplas frustrações que pesam. De qualquer maneira, serão essas, sem dúvida, as razões pelas
quais é tão forte, no mundo moderno, a nostalgia pela comunidade tradicional. As religiões prometem não
só felicidade e contentamento no
outro mundo, mas a estabilidade de
uma solidariedade comunitária aos
que renegam a sociedade moderna,
tida por caótica, atéia, infernal. O
fascismo e o nazismo se alimentaram em grande parte do anseio por
condições de vida mais estáveis, comunitárias.
Friedrich Engels que, como Karl
Marx, aplaudia a destruição pelo capitalismo das comunidades tradicionais, mas sonhava com uma espécie de síntese futura entre a sociedade e a comunidade, queixa-se, em
"A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra", de que, em Londres, "a multidão das ruas já tem,
por si só, algo de repugnante. [...] Essas pessoas se cruzam correndo, como se nada tivessem em comum,
nada a fazer juntas. [...] Essa indiferença brutal, esse isolamento insensível de cada indivíduo no seio dos
seus interesses particulares são tanto mais repugnantes e ferinos quanto maior é o número de indivíduos
confinados num espaço reduzido."
Mas nem sempre é tão negativamente que o homem contemporâneo se relaciona com a grande cidade. Charles Baudelaire, por exemplo
(cuja relação com a grande cidade
era bastante ambígua), diz que "estar fora de casa e no entanto se sentir em toda parte em casa: ver o
mundo, estar no centro do mundo e
continuar escondido do mundo, tais
são alguns dos prazeres menores
desses espíritos independentes,
apaixonados, imparciais, que a linguagem só inadequadamente consegue definir".
Felizmente o homem moderno é
também capaz de se dar conta de
que, mesmo se a realidade é finita,
ela nunca está definida de uma vez
por todas e jamais deixa de ser, de algum modo, surpreendente; e ao viajar, através da arte, do pensamento,
do conhecimento, da imaginação -e
das ruas, dos espaços, dos mares, dos
céus- ele é capaz de conhecer incontáveis possibilidades que enriquecem a sua vida finita, tornando-a
virtualmente infinita.
Proust dizia, por exemplo, que um
belo rosto que passou "é como o encanto de um novo país que se nos foi
revelado por um livro. Lemos seu
nome, o trem vai partir. Que importa se não partimos, sabemos que
existe, temos uma razão a mais para
viver".
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