São Paulo, sábado, 22 de março de 2008

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ANTONIO CICERO

O moderno e o pré-moderno

O homem moderno, faustiano, não conhece limites; em princípio, tudo lhe é possível

QUALQUER HOMEM moderno, medianamente culto, e que viva numa sociedade aberta, consideraria intolerável que lhe fosse negada a perspectiva de ascensão social, de viajar, de se mudar ou de mudar de profissão.
Naturalmente, o fato de que o homem moderno não possa admitir tal imobilidade não significa que ele seja mais feliz -no sentido de mais contente- do que o homem pré-moderno. Ao contrário: quando nem a possibilidade de mudança, nem o suicídio são concebíveis, não há alternativa senão contentar-se com o que se é e o que se tem.
Para o homem que nasceu em determinada casta, não existe a possibilidade, nem em pensamento, de mudar para outra. A casta em que nasceu faz parte do seu ser tanto quanto a família à qual pertence ou o seu próprio corpo; e é desse modo também que ele pertence à religião em que nasceu. Sua vida possui, portanto, uma estabilidade social impensável para o homem moderno. Logo, tal homem é contente, no sentido de ser livre da frustração de querer ser, ter ou saber mais do que aquilo que supõe convir a quem nasceu em sua casta.
Já o homem moderno, faustiano, não conhece limites pré-estabelecidos. Em princípio, tudo lhe é possível. E não é apenas de maneira abstrata que ele pressente as infinitas possibilidades de transformação da sua vida, mas elas lhe são mostradas constante e concretamente através do cinema, da televisão, da internet, da cidade, das vitrines, do teatro, dos jornais e revistas, dos livros etc.
Ora, sendo infinitas as suas possibilidades e finita a sua realidade, o homem moderno não pode deixar de conhecer intimamente a frustração, ao passo que mal conhece a segurança da estabilidade social ou a felicidade do contentamento. Isso não significa necessariamente que ele inveje o homem pré-moderno.
O Fernando Pessoa de "Mensagem", por exemplo, afirma a superioridade do seu espírito moderno nas palavras: "Triste de quem é feliz! / Vive porque a vida dura. / Nada na alma lhe diz / Mais que a lição da raiz / Ter por vida a sepultura".
Mas nem todos pensam assim e, para muitos dos nossos contemporâneos, são sobretudo a instabilidade e as múltiplas frustrações que pesam. De qualquer maneira, serão essas, sem dúvida, as razões pelas quais é tão forte, no mundo moderno, a nostalgia pela comunidade tradicional. As religiões prometem não só felicidade e contentamento no outro mundo, mas a estabilidade de uma solidariedade comunitária aos que renegam a sociedade moderna, tida por caótica, atéia, infernal. O fascismo e o nazismo se alimentaram em grande parte do anseio por condições de vida mais estáveis, comunitárias.
Friedrich Engels que, como Karl Marx, aplaudia a destruição pelo capitalismo das comunidades tradicionais, mas sonhava com uma espécie de síntese futura entre a sociedade e a comunidade, queixa-se, em "A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra", de que, em Londres, "a multidão das ruas já tem, por si só, algo de repugnante. [...] Essas pessoas se cruzam correndo, como se nada tivessem em comum, nada a fazer juntas. [...] Essa indiferença brutal, esse isolamento insensível de cada indivíduo no seio dos seus interesses particulares são tanto mais repugnantes e ferinos quanto maior é o número de indivíduos confinados num espaço reduzido."
Mas nem sempre é tão negativamente que o homem contemporâneo se relaciona com a grande cidade. Charles Baudelaire, por exemplo (cuja relação com a grande cidade era bastante ambígua), diz que "estar fora de casa e no entanto se sentir em toda parte em casa: ver o mundo, estar no centro do mundo e continuar escondido do mundo, tais são alguns dos prazeres menores desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem só inadequadamente consegue definir".
Felizmente o homem moderno é também capaz de se dar conta de que, mesmo se a realidade é finita, ela nunca está definida de uma vez por todas e jamais deixa de ser, de algum modo, surpreendente; e ao viajar, através da arte, do pensamento, do conhecimento, da imaginação -e das ruas, dos espaços, dos mares, dos céus- ele é capaz de conhecer incontáveis possibilidades que enriquecem a sua vida finita, tornando-a virtualmente infinita.
Proust dizia, por exemplo, que um belo rosto que passou "é como o encanto de um novo país que se nos foi revelado por um livro. Lemos seu nome, o trem vai partir. Que importa se não partimos, sabemos que existe, temos uma razão a mais para viver".


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