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Crítica/"Santiago"
Resíduos da memória e do tempo fazem documentário
Versão em DVD permite reler enigmas do filme de João Moreira Salles
ALCINO LEITE NETO
EDITOR DE MODA
Uma das características
dos bons filmes é serem inesgotáveis, é
guardarem sempre algum segredo, um caminho inesperado,
a possibilidade de uma nova
descoberta a cada vez que
o vemos.
Eis a razão por que "Santiago", de João Moreira Salles, é
um dos principais filmes feitos
no Brasil nos últimos anos: ele é
infinitamente aberto à releitura. O seu lançamento em DVD é
uma ótima oportunidade para
os interessados se debruçarem
com atenção sobre os enigmas
deste documentário.
Pois, afinal, o filme está imbuído, ao menos na superfície,
de uma função documentarista. Mas que coisa ele quer "documentar"? As extravagâncias
de Santiago Badariotti Merlo
(1912-1994), o ex-mordomo da
família Moreira Salles? A arrogância do diretor quando jovem e, depois, o seu mea-culpa
feito na meia-idade? O declínio
de uma época, de uma família e
de um personagem? A busca do
tempo perdido? A persistência
e a inutilidade da memória? A
vacuidade da vida? As margens
tênues entre o falso e o verdadeiro no documentário?
Ele é tudo isso ao mesmo
tempo -e pode-se acrescentar
mais coisas. O que nos leva a
questionar como "Santiago"
pode ser tão abundante em situações e reflexões.
Primeiramente, porque não
se trata de um documentário
"de tese". Sua força intelectual
advém do fracasso e da dúvida
-não da certeza. "Santiago" é
ele mesmo uma releitura feita
pelo diretor de um filme anterior, que não foi terminado. As
cenas feitas 13 anos antes, ao
serem revistas, interpelam
Salles sobre o seu presente, em
vez de o reconfortarem com a
nostalgia. O filme a que assistimos é o embate de um homem
(o diretor) com a sua história.
Aberto ao acaso
Em segundo lugar, "Santiago" está investido de uma confiança (rara no Brasil) na expressão cinematográfica como
investigação, e não como demonstração. O diretor refaz o
seu trabalho disposto a se abrir
ao acaso, ao outro, ao mundo
-o que não ocorrera, de fato, na
tentativa do primeiro trabalho.
O novo filme só consegue ser
terminado quando Salles desiste de "mandar" nas imagens e
passa ele próprio a ser controlado pelo cinema. Ou seja,
quando a montagem cede às
potencialidades contidas nos
resíduos, nas lacunas e nos erros do material filmado anteriormente, que é onde, de fato,
se esconde o "real" do filme.
"Santiago" é todo ele um filme
"residual", que se constrói com
as sobras do tempo, do espaço e
da memória, mas também com
aquilo que o inconsciente depositou nas cenas na forma do
não dito e do não filmado.
Por fim, a força de "Santiago"
vem do fato de tratar-se de um
filme que aspira a ser uma outra coisa: não tanto um documentário sobre o mordomo,
mas a narrativa de um aprendizado existencial.
É essa intenção que autoriza
o diretor a se imiscuir no "enredo", na primeira pessoa, acrescentando a ele o personagem
João Moreira Salles. É o que lhe
permite ajuntar, além da trajetória do mordomo, as histórias
de uma infância, de uma família, de um desejo de cinema. É o
que lhe possibilita contar de
modo muito romanesco e até
confessional a frustração do filme de 1992 e o porquê de retomá-lo 13 anos depois. É o que o
leva, enfim, a tirar Santiago da
claustrofóbica objetividade do
documentário e a transformá-lo em mito.
SANTIAGO
Direção: João Moreira Salles
Lançamento: Videofilmes
Quanto: R$ 50, em média
Classificação: livre
Avaliação: ótimo
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