São Paulo, domingo, 22 de março de 2009

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Crítica/"Santiago"

Resíduos da memória e do tempo fazem documentário

Versão em DVD permite reler enigmas do filme de João Moreira Salles

ALCINO LEITE NETO
EDITOR DE MODA

Uma das características dos bons filmes é serem inesgotáveis, é guardarem sempre algum segredo, um caminho inesperado, a possibilidade de uma nova descoberta a cada vez que o vemos.
Eis a razão por que "Santiago", de João Moreira Salles, é um dos principais filmes feitos no Brasil nos últimos anos: ele é infinitamente aberto à releitura. O seu lançamento em DVD é uma ótima oportunidade para os interessados se debruçarem com atenção sobre os enigmas deste documentário.
Pois, afinal, o filme está imbuído, ao menos na superfície, de uma função documentarista. Mas que coisa ele quer "documentar"? As extravagâncias de Santiago Badariotti Merlo (1912-1994), o ex-mordomo da família Moreira Salles? A arrogância do diretor quando jovem e, depois, o seu mea-culpa feito na meia-idade? O declínio de uma época, de uma família e de um personagem? A busca do tempo perdido? A persistência e a inutilidade da memória? A vacuidade da vida? As margens tênues entre o falso e o verdadeiro no documentário?
Ele é tudo isso ao mesmo tempo -e pode-se acrescentar mais coisas. O que nos leva a questionar como "Santiago" pode ser tão abundante em situações e reflexões.
Primeiramente, porque não se trata de um documentário "de tese". Sua força intelectual advém do fracasso e da dúvida -não da certeza. "Santiago" é ele mesmo uma releitura feita pelo diretor de um filme anterior, que não foi terminado. As cenas feitas 13 anos antes, ao serem revistas, interpelam Salles sobre o seu presente, em vez de o reconfortarem com a nostalgia. O filme a que assistimos é o embate de um homem (o diretor) com a sua história.

Aberto ao acaso
Em segundo lugar, "Santiago" está investido de uma confiança (rara no Brasil) na expressão cinematográfica como investigação, e não como demonstração. O diretor refaz o seu trabalho disposto a se abrir ao acaso, ao outro, ao mundo -o que não ocorrera, de fato, na tentativa do primeiro trabalho.
O novo filme só consegue ser terminado quando Salles desiste de "mandar" nas imagens e passa ele próprio a ser controlado pelo cinema. Ou seja, quando a montagem cede às potencialidades contidas nos resíduos, nas lacunas e nos erros do material filmado anteriormente, que é onde, de fato, se esconde o "real" do filme.
"Santiago" é todo ele um filme "residual", que se constrói com as sobras do tempo, do espaço e da memória, mas também com aquilo que o inconsciente depositou nas cenas na forma do não dito e do não filmado.
Por fim, a força de "Santiago" vem do fato de tratar-se de um filme que aspira a ser uma outra coisa: não tanto um documentário sobre o mordomo, mas a narrativa de um aprendizado existencial.
É essa intenção que autoriza o diretor a se imiscuir no "enredo", na primeira pessoa, acrescentando a ele o personagem João Moreira Salles. É o que lhe permite ajuntar, além da trajetória do mordomo, as histórias de uma infância, de uma família, de um desejo de cinema. É o que lhe possibilita contar de modo muito romanesco e até confessional a frustração do filme de 1992 e o porquê de retomá-lo 13 anos depois. É o que o leva, enfim, a tirar Santiago da claustrofóbica objetividade do documentário e a transformá-lo em mito.


SANTIAGO
Direção:
João Moreira Salles
Lançamento: Videofilmes
Quanto: R$ 50, em média
Classificação: livre
Avaliação: ótimo



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