São Paulo, sexta-feira, 22 de abril de 2005

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CINEMA/"UM FILME FALADO"

Oliveira ama a vida em Babel às avessas

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Alguns dos filmes de Manoel de Oliveira estruturam-se em função de um final surpreendente, o que torna a tarefa de resenhá-los um tanto espinhosa. É nesta categoria que se encontra "Um Filme Falado", em que Rosa Maria (Leonor Silveira), uma professora de história, e sua filha partem de Lisboa, num cruzeiro, em direção a Bombaim, na Índia.
A viagem é um pouco mais que turística: antes de chegar a Bombaim, onde encontrará o marido, Rosa Maria visita os sinais da civilização mediterrânea, em Portugal, Itália, Grécia, Turquia, antes de entrar no mar Vermelho.
Ali estão as obras dos homens (dos deuses, por vezes) e, em várias delas, suas desavenças e guerras, seus sacrifícios, sua grandeza e miséria. O feio e o belo da condição humana: esse desejo de conhecimento que impele, por exemplo, os portugueses aos descobrimentos e a derrotas militares mas também a ambição que faz os egípcios construírem pirâmides à custa do trabalho escravo.
Essa reflexão desdobra-se no interior do navio, onde o comandante (John Malkovich) e três mulheres famosas se encontram às refeições: uma executiva célebre (Catherine Deneuve), uma ex-modelo (Stefania Sandrelli) e uma atriz (Olympia Dukakis). Francesa, a primeira; italiana, a segunda; grega, a terceira. O comandante é norte-americano.
Entre os muitos aspectos interessantes dessas conversas, um ressalta: cada uma dessas pessoas fala em sua própria língua e é compreendida pelas demais. Estamos diante de um caso raro de Babel às avessas, onde são personificadas certas eras da civilização ocidental: a Grécia; Roma e a Itália renascentista; a França da revolução; e a América contemporânea. Isso simplifica muito as coisas, é claro, mas em linhas gerais Oliveira observa o mundo como uma seqüência cheia de contradições, em que, apesar de todos os horrores e sofrimentos (pessoais ou nacionais), existem razões de sobra para amar a vida.
Talvez isso só fique inteiramente claro no final -nessa parte surpresa do filme. Antes disso, o espectador se contentará em amar cada uma dessas personagens e cada um dos lugares por onde elas passam. Porque a reflexão, em Oliveira, e neste caso em particular, está estreitamente vinculada ao amor que sente pela civilização, pelas línguas e pelas pessoas que a fizeram.

Tempo
Será prudente o espectador preparar-se para um filme de tempos. Não é falta do famoso "ritmo cinematográfico". Ao contrário, essa lentidão vem de um domínio exemplar sobre o tempo. Estendê-lo nos leva a partilhar com as personagens as palavras que trocam. A beleza dos lugares que visitam. A sonoridade de cada uma das línguas. O encanto, até, de cada religião evocada.
Oliveira mostra, ao longo do tempo e do espaço, um mundo feito simultaneamente de identidade e de diferença. Como se fizesse dessa sua nova obra-prima um ato de amor à civilização, lembra-nos o quanto ela pode ser adorável e vigorosa -e essas pessoas gentis e inteligentes são uma demonstração de vigor, mais do que qualquer ato de força.
Mas, ao mesmo tempo, nos lembra de como não é difícil reduzi-la a ruínas. Pode-se dizer, até, que "Um Filme Falado" é uma cuidadosa preparação para a ruína, para Babel ou para a entropia -conforma a palavra que se prefira usar.


Um Filme Falado
Um Filme Falado
    
Direção: Manoel de Oliveira
Produção: Portugal/França/Itália, 2003
Com: Leonor Silveira, John Malkovich, Catherine Deneuve
Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco, no Frei Caneca Unibanco Arteplex e na Sala UOL de Cinema


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