São Paulo, quinta-feira, 22 de maio de 2008

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Cinema / estréias

"É a Cleópatra lírica, não épica"

Transposição de história ao português, diz diretor, leva em conta aspectos da literatura, da pintura e do teatro

Negrini e Falabella no elenco incomodaram público; "o uso desses astros em outra configuração produz novos significados", afirma Bressane

Divulgação
Os atores Miguel Falabella, como o romano Júlio César, e Alessandra Negrini, como a rainha egípcia Cleópatra, em cena do filme de Julio Bressane que estréia hoje

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Depois de criar retratos poéticos de grandes figuras masculinas da cultura ocidental -são Jerônimo, padre Antonio Vieira, Friedrich Nietzsche-, Julio Bressane leva às telas a partir de hoje a sua personalíssima visão de um dos maiores mitos femininos da história, a rainha egípcia Cleópatra (69-30 a.C.).
O filme venceu o Festival de Brasília do ano passado, despertando amor, ódio e perplexidade no público e na crítica, como costuma acontecer com a obra radical do cineasta.
Bressane disse à Folha que sempre foi um "curioso da lenda de Cleópatra", mas que pensou no filme em 1989, após ver com sua mulher, Rosa Dias (co-roteirista do longa), uma mostra de relíquias de Alexandria na British Library, em Londres.
"Fui procurar verbetes sobre Cleópatra e encontrei mais de 500 títulos", diz o diretor. Volume surpreendente para uma personagem cujas únicas fontes históricas se resumem a algumas páginas de Plutarco, do início do século 2 d.C. -o resto é suposição, poesia, lenda. "De certo modo, Cleópatra é uma ficção inventada por Plutarco, cujo bisavô fez a autópsia dela."
O que impulsionou Bressane a abordar o tema foi a constatação de que não há quase nada sobre ela na literatura de língua portuguesa, "com exceção de meia dúzia de versos de "Os Lusíadas" e de um verso de Olavo Bilac". Sua intenção foi, então, "tentar ver esse mito da perspectiva da música da língua portuguesa, tal como ela se expressa no Brasil. É uma Cleópatra lírica, não épica".
Em cinemascope, a "Cleópatra" de Bressane se estende languidamente nas pedras de Copacabana como se estivesse à beira do Mediterrâneo, em Alexandria.

Falabella romano
Uma das opções que mais desconcertaram os espectadores foi a escolha do elenco: Alessandra Negrini no papel-título, Miguel Falabella e Bruno Garcia, respectivamente, como os dois grandes amores romanos da rainha, Júlio César e Marco Antonio. "Vincular um ator a este ou àquele programa de TV de visibilidade faz parte da grande tirania que vivemos hoje", diz o diretor. Na alquimia de Bressane, "o uso desses astros em outra configuração produz novos significados".
Do mesmo modo, a dicção de cada ator, a inserção da música popular brasileira na trilha sonora, a luz carioca, tudo isso cria uma Cleópatra única, diferente da shakespeareana e da hollywoodiana, mas que as leva em conta, assim como toda a iconografia inspirada pelo mito ao longo de dois milênios.
Ciente de que sua personagem concentra em si um punhado de polaridades -entre Ocidente e Oriente, Roma e Egito, Vênus e Ísis, erudição e erotismo, homem e mulher-, Bressane procurou jogar no filme com esses contrastes.
"Cleópatra, última representante da dinastia dos Ptolomeus, seduziu Júlio César por sua cultura refinada, seu uso do grego arcaico. Com Marco Antonio, a relação é sobretudo carnal", diz o diretor. "Com César, ela desenvolve a idéia de fundir o Império Romano com Alexandria. A imagem é a da pirâmide que sobe. Com Marco Antonio, a pirâmide desce, vira vulva, é o abismo dionisíaco, a ponto de ela abandonar a vida que não fosse a vida sexual."
A inversão de poder entre Roma e Egito, entre homem e mulher, se expressa numa cena das mais curiosas, na qual César e Cleópatra falam cada um com a voz do outro.
Bressane encena sua "Cleópatra" na confluência entre a literatura, a pintura, a dança e sobretudo o teatro, "não apenas o teatro ocidental moderno, de palco e platéia, mas também o teatro primordial do transe, do terreiro".
Como sempre ocorre com a arte de verdade, há os que embarcam e os que ficam de fora. "Hoje há uma padronização de tal ordem no ritmo das imagens que tudo o que foge dos clichês dominantes é tido como fora da lei. Em Brasília, pedi paciência ao público. Ao fim, a maioria aplaudiu o filme, que não era feito para isso. É sinal de que houve comunicação."


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