São Paulo, sexta-feira, 22 de maio de 2009

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Abaixo o realismo na TV

Diretor Jorge Furtado filma série "Decamerão" para a Globo e diz que TV sofre da "doença do realismo"

Fotos Fábio Rebelo/TV Globo
O diretor Jorge Furtado, 49, nas gravações de `Decamerão´, em Garibaldi(RS); a série estreará na TV no segundo semestre

AUDREY FURLANETO
ENVIADA ESPECIAL A GARIBALDI (RS)

Numa casa de madeira em que tudo remete ao século 19, há uma caneca de plástico esquecida sobre a mesa. Nela, lê-se a frase de Rimbaud: "Jamais réel et toujours vrai" [Nunca real e sempre verdadeiro]. Foi escrita à mão por Jorge Furtado porque sintetiza sua busca como diretor de cinema e televisão: quer estar distante da realidade e perto da mágica.
"A TV vive a "doença do realismo'", afirma ele, que acumula trabalhos com a Globo, desde roteiros e direção de episódios até a criação de projetos completos, como "Dóris para Maiores" (1990), "Agosto" (1992), "Comédias da Vida Privada" (de 1995 a 1997), entre outros.
Às vésperas de completar 50 anos, Furtado dirige agora "Decamerão", especial que se transformou em série e tem estreia prevista para o segundo semestre na própria Globo. Como se quisesse um antídoto para a doença que aponta, ele faz o novo trabalho longe dos estúdios da emissora e da produção tradicional de televisão.
Para criar o roteiro, trabalhou com o diretor Guel Arraes por mais de um ano. Como locação, usa uma fazenda colonial cravada no pé de uma montanha em Garibaldi (RS). Levou para lá 65 funcionários, 80 figurantes, sete atores principais e 74 rolos de película -"Decamerão" será captada em 16mm e depois digitalizada.
"O tipo de televisão que eu faço é para prestar atenção", diz. "Cada plano é pensado. A gente não só escreveu o roteiro inteiro já marcando as cenas, como depois ensaiou com os atores [num hotel do Rio de Janeiro, em abril], decupou o roteiro, plano por plano, desenhando story-board e tudo. Isso faz diferença no resultado, porque não tem nada gratuito. Na televisão, é muito comum ver algo que vai do plano aberto para o close e, de novo, do plano aberto para o close. É um negócio que não tem muito sentido em termos narrativos, mas que é usado para dar ritmo."
O resultado, diz ele, é a transformação da TV numa espécie de rádio, que as pessoas "vêem de costas, olham, saem e voltam". Furtado afirma que seu trabalho é em outro sentido: "Faço uma coisa que, teoricamente, é para a pessoa sentar e assistir. Para assistir a tudo, prestando atenção".
O próprio texto de "Decamerão", baseado na coletânea de contos de Giovanni Boccaccio (1313-1375), vai exigir atenção do espectador: as falas são em versos, escritos por Furtado e Guel Arraes a partir do original. "Ninguém fala em verso. Quando tem uma coisa em verso, tu estabeleces imediatamente um distanciamento do realismo."


"TV portaria"
Para que não reste dúvida sobre a proposta antirrealista de "Decamerão", há ainda a questão do tempo em que se passa a história, que é indefinido -ou definido pelo diretor como aquele tempo do "há muito tempo, num lugar distante".
Mas, se ficar tão longe da realidade como deseja seu diretor, a série não corre o risco de perder público? "Essa era minha maior dúvida", diz Furtado. "Por isso, a gente fez um antes [o especial de um episódio, exibido em janeiro] para ver qual é que era, porque poesia tende a ser assim: "Ah, coisa chata, erudita". "A Pedra do Reino", por exemplo, era mais hermético, não tinha uma comunicação. Mas não é o nosso caso. São poemas de linguagem popular."
O que importa é ganhar o público sem apelar para o que chama de "TV portaria". Em 2002, hospedado com a equipe num hotel para as filmagens de "O Homem que Copiava", Furtado descobriu na TV do quarto um canal que exibia imagens da recepção em tempo real. "Eu ficava olhando a TV no quarto e me dei conta de que toda a equipe assistia", lembra, rindo.
"Tem uma compulsão pela realidade, com "Big Brother", todos os realities, os blogs, o YouTube. E o atrativo é: isso realmente está acontecendo. Tudo bem. A "TV portaria" está realmente acontecendo. O cara está realmente chegando com a pizza, está realmente entregando a pizza para a pessoa. E daí? Qual é o valor dramatúrgico disso? O que eu aprendo com isso? É quase que um voyeurismo, e eu acho que a poesia é outra coisa. A arte é uma outra coisa. Ou, pelo menos, pode ser outra coisa que não tem nada a ver com a realidade."


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