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MARCELO COELHO
Sobre tigres, lobos e cordeiros
Indicações de livros são
sempre coisa arriscada; a rigor,
só deveriam ser feitas a amigos
próximos, a pessoas cujos interesses conhecemos bem. Mas quem
atualmente se decepciona com o
governo, quem já está decepcionado há tempo e quem nunca teve
ilusão nenhuma a esse propósito
talvez tire proveito de um pequeno e clássico livro de poemas de
William Blake (1757-1827) que,
pela primeira vez, é traduzido na
íntegra para o português.
Trata-se de "Canções da Inocência e da Experiência", livro lançado neste ano pela editora Crisálida, de Belo Horizonte, com tradução de Mário Alves Coutinho e
Leonardo Gonçalves.
Alguns poemas de Blake estão
presentes em todas as antologias
da literatura inglesa. São simples
de ler, difíceis de entender e quase
impossíveis de traduzir: é o caso
de "O Tigre", texto hipnótico, obsessivo, que parece perseguir o seu
leitor.
"Tyger Tyger, burning bright,/
In the forests of the night;/What
immortal hand or eye,/Could frame thy fearful symmetry?" A estrofe inicial se repete no fim, como
que "enjaulando" o poema, e as
traduções não conseguem domá-lo completamente. "Tigre, tigre,
flamante fulgor/ Nas florestas de
denso negror,/Que olho imortal,
que mão poderia/ Te moldar a feroz simetria?" -assim era a tradução de Paulo Vizioli, numa coletânea publicada há 20 anos.
Mário Coutinho e Leonardo
Gonçalves mantêm a exótica ortografia do original e buscam seguir
o ritmo de tambor na selva:
"Tygre, Tygre, fogo ativo,/ Nas florestas da noite vivo;/ Que olho
imortal tramaria/ Tua temível simetria?".
Melhor; ainda assim, parece
mais fácil entender "in the forests
of the night" em inglês mesmo, do
que acompanhar a pirueta do
"nas florestas da noite vivo"...
O poema, em todo caso, continua encadeando suas perguntas:
"Que profundezas, que céus,/
Acendem os olhos teus? (...) Que
martelo? Que elo? Tua mente/
Vem de qual fornalha ardente?".
Em inglês: "In what distant deeps
or skies,/Burnt the fire of thine
eyes? (...) What the hammer? what
the chain,/ In what furnace was
thy brain?".
As seis estrofes repetem a mesma
inquietação: de onde vem, quem
criou, quem forjou esse animal
terrível? O tom de ameaça culmina numa última questão: "Did he
who made the Lamb make thee?"
("Quem te fez, fez também o Cordeiro?", traduz Paulo Vizioli).
O clima de terror romântico, a
concisão e a eletricidade de alguns
versos tornam "O Tigre" um poema inesquecível. Mas, de minha
parte, sempre me pareceu que havia algo de inconvincente, não sei
se de exagerado, de sensacionalista, naquilo tudo... Talvez porque
um tigre não me pareça o animal
mais terrível, mais demoníaco de
toda a criação. A beleza do felino
depõe, a meu ver, bastante a favor
do Pai Celeste -que talvez não
estivesse tão inspirado quando fez
o cordeiro. De qualquer modo, um
poema sobre o lobo, ou o chacal,
talvez funcionasse melhor... Preferências zoológicas à parte, para
mim é como se o poema de Blake
estivesse tentando dizer uma "outra coisa" que não se revela; sua
simplicidade não se entrega, parece fechar-se em si mesma.
Mas "O Tigre" pertence à segunda parte do livro -as "Canções
da Experiência". Daí a vantagem
da edição completa: é que na primeira parte, as "Canções da Inocência", pode-se ler o poema que
faz par com esse. Trata-se, é claro,
de "O Cordeiro" e imita a mais boboca e fofinha canção de ninar
que alguém possa querer: "Cordeirinho, quem te fez?/ Pois tu sabes quem te fez?/ Deu-te a vida e
deu-te pasto,/ Ribeirinho e largo
prado;/ Lã macia e sem malícia
(...)".
Em inglês, chama a atenção a
mesma rima em "ight", que era
tão sinistra no caso do tigre: "Little Lamb who made thee/Dost
thou know who made thee/ Gave
thee life & bid the feed,/ By the
stream & o'er the mead; /Gave
thee clothing of delight/ Softest clothing wooly bright (...)".
Com esta edição bilíngüe, o leitor pode então apreciar o paralelismo, as simetrias entre os poemas da primeira parte e os da segunda. Nas "Canções da Inocência", lemos versos otimistas sobre
um limpadorzinho de chaminés
que cumpre, feliz, o seu dever e vai
para o Céu. Nas "Canções da Experiência", a realidade é bem outra. O prefácio de Mário Coutinho
e Leonardo Gonçalves acrescenta
informações importantes sobre
aquele ofício, uma das mais horríveis modalidades de trabalho infantil inventadas pelo homem. Só
crianças muito pequenas, é claro,
podiam entrar nas chaminés para
limpá-las; "seus joelhos e cotovelos, usados para subir, sangravam
e ficavam em carne viva".
Blake, dizem os prefaciadores,
foi sempre considerado um místico, um louco, um ingênuo pelos
seus contemporâneos. Há, aliás,
uma frase linda da sra. Blake a
respeito dele: "Convivo muito
pouco com meu marido. Ele está
sempre no Paraíso". Gonçalves e
Coutinho ressaltam a exatidão
convicta com que o poeta denunciava os horrores do capitalismo
inglês. Citam, por fim, o crítico
Northrop Frye, para quem Blake
pode ser lido em qualquer época e
parecerá sempre estar se referindo às questões da atualidade.
Questões da atualidade? Não
gosto de pensar que a velha "inocência" petista deu lugar à "experiência" destes dias de Delúbio e
Marcos Valério. Seria nobilitar,
como feitos de maturidade política, os entendimentos estarrecedores do partido com o fisiologismo.
Não é também "maturidade", entretanto, o que se elogia quando
Palocci e sua equipe recebem o assentimento do mercado? Quem
fez Delúbio não fez Palocci?
Mas o poema de Blake, com
seus cordeiros e tigres, não me parece vir tão a propósito agora
quanto a frase de outro poeta,
Paul Valéry: um lobo, diz ele, nada mais é que um cordeiro assimilado.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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