São Paulo, quinta-feira, 22 de junho de 2006

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NINA HORTA

Histórias de um vagão-restaurante

Sabiam que o pão Pullman foi inventado para os trens, para que as fatias se acomodasse umas sobre as outras?

E EU que pensei que a única coisa que ainda queria na vida era um livro da Amazon pingando em casa, só e só, vejo que de repente quero um trem. Não qualquer trem, Deus me livre, quero o Santa Cruz, da Central. Nem precisa do Vera Cruz. Passava em Barra do Piraí, fazia baldeação, à noite, filme de terror, aquela estação vazia, um hotel de quinta. Não, não valia a pena, só o Santa Cruz era chique, sexy, saía às 23h com um mundão de gente que não se conhecia, todos irmanados pelo medo do avião. Os vagões eram de aço inoxidável para bitola de 1.60. Fiquei sabendo dessas coisas mais tarde, quando meu marido, apaixonado por trens, foi diretor da Rede Ferroviária Federal e depois assistiu desconsolado ao sucateamento de nossas estradas de ferro. Os trens foram construídos pela Budd Company, dos Estados Unidos. Uma composição formada por carros-dormitórios duplos, cabine de cima, cabine de baixo, carro-restaurante, carro-bar e um carro-bagagem. O atendimento do restaurante era feito por comissárias e o das cabines, por camareiros, de uniforme azul e galões dourados, parecia "... E o Vento Levou", uns caras solícitos, simpáticos, fazendo gênero, revirando o branco do olho. Mas de que queremos falar? Do vagão-restaurante, é claro: por pior que fosse, era maravilhoso, uma economia de espaço na cozinha, tudo guardado onde deveria estar, nada de mais, nada sobrando. Sabiam que o pão Pullman foi inventado para os vagões de trem Pullman, para que as fatias, retangulares, se acomodassem umas sobre as outras e não ocupassem espaço indevido? Pois foram. Depois de irmos todos para a cama, sono embalado. (O certo era reservar cabines com as camas atravessadas, no sentido oposto ao dos trilhos, navegava-se contra o chacoalhar.) De manhã, todos bem dormidos, cheirosos, penteadinhos, chegávamos aos subúrbios do Rio. Para mim, mais depressa que avião, não perdia um minuto da vida, ninados pela Central. E herdei um apartamentinho no Rio, pensei muito, reformo ou vendo, reformei por causa do trem. Queria que os netos aprendessem a gostar do Rio, a atravessar aquela pontezinha desmantelada entre dois vagões, a andar nos corredores sem cair, a comer o bife a cavalo, a beber grapete, coisa que o Brasil não soube apreciar. Aquele cheiro de trem, amigos, vocês não sabem o que perderam, os talheres de mesa que eram de um design moderno, os bules de café de alpaca, a perícia dos garçons que jamais se desequilibravam, os companheiros de mesa, que, quando iam se conhecer, era o apito final, hora de chegar. E a comida, a comida... Bife com batata frita era o que mais se pedia, deveria realmente ser o melhor, mais fácil de fazer, a não ser pelas ervilhas, que não eram uma boa idéia, rolavam de cá para lá, impossíveis. O cozinheiro de pernas abertas para manter o equilíbrio. Cheguei a ver Aracy de Almeida, a dama da Central, e Jorge Veiga... Um uisquinho, vagão-restaurante sacolejando, ia ficando tarde, sumiam todos, olhavam pelas janelas ao cair da noite, tudo preto lá fora, a gente correndo e dava uma inveja boa das casinhas iluminadas, rádio ligado, gente instalada com os pés no chão e você... correndo, correndo. E de manhã apareciam todos de volta para o café da manhã, limpinhos. E que malabarismos para usar a pia e todo o resto. Ah, eu pagava para comprar um vagão da Central só para mim, o calor do Rio se aproximando, o bafo de ar quente que nos saudava na estação. Nós, saídos do trem gelado, era dor de garganta na certa. No tempo do Collor não deu outra, ninguém queria mais andar de trem, marajá não anda de trem, definitivamente não era chique, acabou-se o que era doce. Fiquei com aquele apartamento lá, e o trem se foi, apitando rumo ao nada.

ninahorta@uol.com.br


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