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NINA HORTA
Histórias de um vagão-restaurante
Sabiam que o pão Pullman foi inventado para os trens, para que as fatias se acomodasse umas sobre as outras?
E
EU que pensei que a única coisa que ainda queria na vida
era um livro da Amazon pingando em casa, só e só, vejo que de
repente quero um trem. Não qualquer trem, Deus me livre, quero o
Santa Cruz, da Central. Nem precisa
do Vera Cruz. Passava em Barra do
Piraí, fazia baldeação, à noite, filme
de terror, aquela estação vazia, um
hotel de quinta. Não, não valia a pena, só o Santa Cruz era chique, sexy,
saía às 23h com um mundão de gente que não se conhecia, todos irmanados pelo medo do avião.
Os vagões eram de aço inoxidável
para bitola de 1.60. Fiquei sabendo
dessas coisas mais tarde, quando
meu marido, apaixonado por trens,
foi diretor da Rede Ferroviária Federal e depois assistiu desconsolado
ao sucateamento de nossas estradas
de ferro. Os trens foram construídos
pela Budd Company, dos Estados
Unidos. Uma composição formada
por carros-dormitórios duplos, cabine de cima, cabine de baixo, carro-restaurante, carro-bar e um carro-bagagem. O atendimento do restaurante era feito por comissárias e o
das cabines, por camareiros, de uniforme azul e galões dourados, parecia "... E o Vento Levou", uns caras
solícitos, simpáticos, fazendo gênero, revirando o branco do olho.
Mas de que queremos falar? Do
vagão-restaurante, é claro: por pior
que fosse, era maravilhoso, uma
economia de espaço na cozinha, tudo guardado onde deveria estar, nada de mais, nada sobrando.
Sabiam que o pão Pullman foi inventado para os vagões de trem Pullman, para que as fatias, retangulares, se acomodassem umas sobre as
outras e não ocupassem espaço indevido? Pois foram.
Depois de irmos todos para a cama, sono embalado. (O certo era reservar cabines com as camas atravessadas, no sentido oposto ao dos
trilhos, navegava-se contra o chacoalhar.) De manhã, todos bem dormidos, cheirosos, penteadinhos,
chegávamos aos subúrbios do Rio.
Para mim, mais depressa que avião,
não perdia um minuto da vida, ninados pela Central.
E herdei um apartamentinho no
Rio, pensei muito, reformo ou vendo, reformei por causa do trem.
Queria que os netos aprendessem
a gostar do Rio, a atravessar aquela
pontezinha desmantelada entre
dois vagões, a andar nos corredores
sem cair, a comer o bife a cavalo, a
beber grapete, coisa que o Brasil não
soube apreciar. Aquele cheiro de
trem, amigos, vocês não sabem o
que perderam, os talheres de mesa
que eram de um design moderno, os
bules de café de alpaca, a perícia dos
garçons que jamais se desequilibravam, os companheiros de mesa, que,
quando iam se conhecer, era o apito
final, hora de chegar.
E a comida, a comida... Bife com
batata frita era o que mais se pedia,
deveria realmente ser o melhor,
mais fácil de fazer, a não ser pelas ervilhas, que não eram uma boa idéia,
rolavam de cá para lá, impossíveis. O
cozinheiro de pernas abertas para
manter o equilíbrio.
Cheguei a ver Aracy de Almeida, a
dama da Central, e Jorge Veiga... Um
uisquinho, vagão-restaurante sacolejando, ia ficando tarde, sumiam todos, olhavam pelas janelas ao cair da
noite, tudo preto lá fora, a gente correndo e dava uma inveja boa das casinhas iluminadas, rádio ligado, gente instalada com os pés no chão e você... correndo, correndo.
E de manhã apareciam todos de
volta para o café da manhã, limpinhos. E que malabarismos para usar
a pia e todo o resto. Ah, eu pagava para comprar um vagão da Central só
para mim, o calor do Rio se aproximando, o bafo de ar quente que nos
saudava na estação. Nós, saídos do
trem gelado, era dor de garganta na
certa.
No tempo do Collor não deu outra, ninguém queria mais andar de
trem, marajá não anda de trem, definitivamente não era chique, acabou-se o que era doce. Fiquei com aquele
apartamento lá, e o trem se foi, apitando rumo ao nada.
ninahorta@uol.com.br
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