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CONTARDO CALLIGARIS
Os revolucionários silenciosos
Uma alternativa entre liberdades "formais" e liberdades "reais" é um engodo do século 20
O
PSICANALISTA Fábio Hermann observou uma vez que
turista é quem tira seu retrato colocando-se na frente do lugar
visitado, mas olhando para a câmera: somos turistas quando viajamos
de costas para o real.
Pois bem, há uma nova onda de
turismo revolucionário. A revista
italiana "Panorama" (8/6/2006) relata que a Venezuela de Chávez é
destinação de pacotes para quem
busca um sonho de socialismo realizado. Garotos-propaganda desse turismo são intelectuais que viajam à
custa do governo, ficam no Hilton de
Caracas, visitam o que lhes é mostrado, aparecem na TV com Chávez
e cantam seus elogios. Entre eles,
compareceram Gianni Vattimo (estranho, por se tratar de um agudo
pensador da pós-modernidade) e,
previsível, Toni Negri (ex-mentor
das Brigadas Vermelhas e agora militante da antiglobalização).
É certo que Chávez promoveu
programas sociais relevantes para a
Venezuela. Mas são também conhecidos seu uso de petrodólares para
influenciar a política de outros países da América Latina, a ameaça de
censura que pesa sobre a imprensa
venezuelana etc.
Aos turistas revolucionários de
Caracas, sugiro uma leitura.
Rossana Rossanda acaba de publicar (na Itália) suas memórias, "La
Ragazza del Secolo Scorso" (a moça
do século passado; Einaudi).
Aos 19 anos, Rossanda entrou na
Resistência antifascista e no Partido
Comunista Italiano, do qual, depois
da guerra, se tornou dirigente. Em
1969, foi expulsa do partido por suas
posições críticas. Logo, foi fundadora de um jornal, "Il Manifesto", que
foi uma voz insubstituível para a esquerda italiana durante os "anos de
chumbo" (as décadas de 70 e 80, em
que a Itália viveu entre o terrorismo
golpista da extrema direita e a atuação sanguinária da extrema esquerda, em particular das Brigadas Vermelhas).
Do livro de Rossanda (maravilhoso por sua honestidade), escolho um
episódio.
Em 1949, Rossanda visitou a
União Soviética como membro de
uma delegação italiana. Quase 40
anos mais tarde, em Moscou, ela encontrou uma velhinha que tinha
passado a metade de sua vida nos
campos de concentração soviéticos.
A velhinha lhe perguntou: "Mas por
que você veio em 1949 ajudar Stálin?".
Rossanda não alega que ela não sabia: Arthur Koestler, David Rousset
e George Orwell já tinham levantado suas vozes. Embora ela tenha sido uma das primeiras a falar, ela
questiona seu silêncio e medita sobre as três explicações clássicas.
1) A União Soviética é uma coisa, a
Itália é outra: aqui na Itália, precisamos de um mito. Pressuposto: é melhor deixar as bases no escuro, pois
elas não entenderiam. Ora, a "tática"
de mentir corrompe e destrói a vida
democrática interna da organização
que a adota.
2) A União Soviética é ameaçada,
sua "rigidez" é uma necessidade de
defesa. Como aceitar uma necessidade de defesa cujo preço são os próprios valores pelos quais a gente luta? Nos EUA de hoje, por exemplo,
as medidas excepcionais contra o
terrorismo, se elas comprometerem
os valores da democracia, sancionarão, de fato, o triunfo do adversário.
3) Para que servem os direitos políticos sem a segurança de poder comer e dormir ao abrigo de um teto?
"Não há liberdade atrás da cortina
de ferro?" "E que liberdade temos
nós, a de perder o emprego e passar
fome?" Ora, a idéia de uma alternativa entre liberdades "formais" e liberdades "reais" é um dos grandes
engodos do século 20. Por que deveríamos trocar a liberdade pelo pão
ou o pão pela liberdade?
O silêncio da esquerda foi medo de
perder votos e medo de que os partidos se desagregassem. São as mesmas razões que tornam nossa palavra covarde na vida cotidiana: o medo de perder o amor do outro e o medo de introduzir uma falha na imagem que temos de nós mesmos. Receitas para o desastre.
Os turistas revolucionários poderiam me responder que é preciso
considerar o conjunto da "revolução" venezuelana, sem se perder em
"detalhes".
Rossanda conta que, em 49, ela
não disse nada quando, visitando a
galeria Tretjakov, ela descobriu que
os quadros de Malevich e de Kandinsky estavam no porão, substituídos por crostas social-realistas. É
um detalhe?
Pode ser. Mas suspeito, com Rossanda, que o socialismo tenha se tornado pesadelo também porque ninguém conseguia perguntar por que
os quadros de Malevich e de Kandinsky estavam no porão.
ccalligari@uol.com.br
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