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CARLOS HEITOR CONY
Da crônica e do soneto
Não pude escapar da vala comum e estou falando sobre o assunto que todos falaram
PIOR DO que a falta de assunto é
o assunto demais. Fica tudo
embolado na cabeça dos cronistas, e todos acabam escrevendo
sobre as mesmas coisas, quase que
com as mesmas palavras, a mesma
exaltação ou, conforme o caso, a
mesma indignação. A oferta é abundante e, para o meu gosto pessoal,
divertida.
Como perder a oportunidade de
falar sobre o Vavá, o irmão do presidente que fazia tráfico de influência
pela módica importância de "dois
pau" -moeda paralela aos bois que
o Renan Calheiros vendeu para pagar o leite da filha de uma gestante.
E tem o relatório do Cafeteira que
estudou no banheiro a complexa papelada que o presidente do Senado
apresentou à Comissão de Ética.
Nem todos os assuntos têm a grossura dos citados, há sutilezas na vida
pública que escapam à vã filosofia
dos comentaristas políticos, como a
operação abafa que neutraliza a
Operação Navalha, que agora não sei
se substituiu ou foi substituída pela
Operação Furacão -são tantas as
operações que tudo fica na mesma.
E ainda sobrou o conselho que a
ministra do Turismo deu às vítimas
do apagão aéreo que passam horas
para embarcar -quando conseguem embarcar e não precisam voltar para casa, como aconteceu com o
Moacyr Scliar, em Porto Alegre, que
viaja muito pelo país, fazendo palestras e dando erudita presença nas
sessões da ABL.
Creio que poderia mandar imprimir um cartão de visita com a seguinte identificação: "O único que
não escreveu sobre o relaxe e goze
da Marta Suplicy".
Embora com atraso, não pude escapar da vala comum e aqui estou eu
falando sobre o assunto que todos
falaram, não se perde uma oportunidade dessas. Bem verdade que para
mim a frase ministerial não faz muito sentido, confundo tensão com tesão de maneira que não preciso relaxar para gozar.
O chato nisso tudo é que os jornais
ficam monótonos, a maioria dos textos concentra-se em um ou dois temas -o resto fica dedicado às balas
perdidas e às novas descobertas para a cura do câncer.
Lembro um episódio de minha fase escolar, no seminário onde estudei, o mesmo em que estudou o Bentinho do "Dom Casmurro".
Havia um curso de métrica, os alunos aprendiam a diferenciar um decassílabo de um alexandrino, a buscar rimas complicadas, muito usadas pelos parnasianos ("saudade"
podia rimar com "há de"), com muito esforço aprendia-se alguma coisa,
mas o problema era o assunto.
A minha turma era grande, 28
não-poetas obrigados a poetar para
fazer a média necessária no final do
ano. Verdade que nos deram tempo
para buscar inspiração, no pressuposto de que todos saberíamos fazer
um soneto lapidar como os de Olavo
Bilac.
A questão era o que hoje chamamos de "conteúdo". O que botar
dentro dos 14 versos fatais?
Não podíamos dedicar versos à
amada, recurso para o qual os adolescentes costumam apelar em transe igual. Em tese, éramos proibidos
de ter amadas.
Podíamos substituir a amada por
Jesus Cristo, mas desconfiamos uns
dos outros, todos recorreriam ao
mesmo tema, que de saída oferecia
uma porção de rimas: salvador,
amor, penhor, senhor, protetor.
A fortuna ajuda aos audazes -e
todos precisávamos de audácia para
cometer um soneto, por mais abominável que fosse. Deu-se que naqueles dias morrera o cardeal Sebastião Leme, em cheiro de santidade
como convém aos cardeais. Ele sempre nos visitava, quando o fazia era
feriado. Sempre que ia a Roma, na
volta trazia-nos uma bênção especial do papa reinante.
Não houve combinação prévia,
mas tirante um aluno de Campos
que já havia feito um extenso poema
ao Cristo Redentor, no dia da prova
apareceram 27 sonetos que começavam com as sentidas palavras:
"Morreu o cardeal!". É pena que nenhum deles tenha sobrevivido e parado nas antologias.
Agora, quando abro os jornais e
leio em diagonal os textos oferecidos, lembro sempre os 27 sonetos
dedicados à morte do cardeal. Uns
pelos outros, eram todos mais ou
menos iguais.
Daí que ofereço graciosamente o
tema do assunto único que combina
espantosamente com o pensamento
único. A austera figura do senador
Cafeteira lendo a papelada do Renan
Calheiros no banheiro pode não dar
bons sonetos, mas dá crônica adequada aos tempos que atravessamos.
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