São Paulo, sexta-feira, 22 de junho de 2007

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CARLOS HEITOR CONY

Da crônica e do soneto

Não pude escapar da vala comum e estou falando sobre o assunto que todos falaram

PIOR DO que a falta de assunto é o assunto demais. Fica tudo embolado na cabeça dos cronistas, e todos acabam escrevendo sobre as mesmas coisas, quase que com as mesmas palavras, a mesma exaltação ou, conforme o caso, a mesma indignação. A oferta é abundante e, para o meu gosto pessoal, divertida.
Como perder a oportunidade de falar sobre o Vavá, o irmão do presidente que fazia tráfico de influência pela módica importância de "dois pau" -moeda paralela aos bois que o Renan Calheiros vendeu para pagar o leite da filha de uma gestante.
E tem o relatório do Cafeteira que estudou no banheiro a complexa papelada que o presidente do Senado apresentou à Comissão de Ética. Nem todos os assuntos têm a grossura dos citados, há sutilezas na vida pública que escapam à vã filosofia dos comentaristas políticos, como a operação abafa que neutraliza a Operação Navalha, que agora não sei se substituiu ou foi substituída pela Operação Furacão -são tantas as operações que tudo fica na mesma.
E ainda sobrou o conselho que a ministra do Turismo deu às vítimas do apagão aéreo que passam horas para embarcar -quando conseguem embarcar e não precisam voltar para casa, como aconteceu com o Moacyr Scliar, em Porto Alegre, que viaja muito pelo país, fazendo palestras e dando erudita presença nas sessões da ABL.
Creio que poderia mandar imprimir um cartão de visita com a seguinte identificação: "O único que não escreveu sobre o relaxe e goze da Marta Suplicy".
Embora com atraso, não pude escapar da vala comum e aqui estou eu falando sobre o assunto que todos falaram, não se perde uma oportunidade dessas. Bem verdade que para mim a frase ministerial não faz muito sentido, confundo tensão com tesão de maneira que não preciso relaxar para gozar.
O chato nisso tudo é que os jornais ficam monótonos, a maioria dos textos concentra-se em um ou dois temas -o resto fica dedicado às balas perdidas e às novas descobertas para a cura do câncer.
Lembro um episódio de minha fase escolar, no seminário onde estudei, o mesmo em que estudou o Bentinho do "Dom Casmurro".
Havia um curso de métrica, os alunos aprendiam a diferenciar um decassílabo de um alexandrino, a buscar rimas complicadas, muito usadas pelos parnasianos ("saudade" podia rimar com "há de"), com muito esforço aprendia-se alguma coisa, mas o problema era o assunto.
A minha turma era grande, 28 não-poetas obrigados a poetar para fazer a média necessária no final do ano. Verdade que nos deram tempo para buscar inspiração, no pressuposto de que todos saberíamos fazer um soneto lapidar como os de Olavo Bilac.
A questão era o que hoje chamamos de "conteúdo". O que botar dentro dos 14 versos fatais?
Não podíamos dedicar versos à amada, recurso para o qual os adolescentes costumam apelar em transe igual. Em tese, éramos proibidos de ter amadas.
Podíamos substituir a amada por Jesus Cristo, mas desconfiamos uns dos outros, todos recorreriam ao mesmo tema, que de saída oferecia uma porção de rimas: salvador, amor, penhor, senhor, protetor.
A fortuna ajuda aos audazes -e todos precisávamos de audácia para cometer um soneto, por mais abominável que fosse. Deu-se que naqueles dias morrera o cardeal Sebastião Leme, em cheiro de santidade como convém aos cardeais. Ele sempre nos visitava, quando o fazia era feriado. Sempre que ia a Roma, na volta trazia-nos uma bênção especial do papa reinante.
Não houve combinação prévia, mas tirante um aluno de Campos que já havia feito um extenso poema ao Cristo Redentor, no dia da prova apareceram 27 sonetos que começavam com as sentidas palavras: "Morreu o cardeal!". É pena que nenhum deles tenha sobrevivido e parado nas antologias.
Agora, quando abro os jornais e leio em diagonal os textos oferecidos, lembro sempre os 27 sonetos dedicados à morte do cardeal. Uns pelos outros, eram todos mais ou menos iguais.
Daí que ofereço graciosamente o tema do assunto único que combina espantosamente com o pensamento único. A austera figura do senador Cafeteira lendo a papelada do Renan Calheiros no banheiro pode não dar bons sonetos, mas dá crônica adequada aos tempos que atravessamos.


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