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RESENHA DA SEMANA
Fábula tropeira
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Alguns escritores, pela força e originalidade de seu
estilo, ao mesmo tempo em que
inauguram uma nova prosa e
alargam a concepção de literatura, descortinando um novo
mundo com seus livros, acabam
produzindo um efeito paradoxal de fechamento sob sua atração e influência. O que na origem era invenção, desconhecido e descoberta passa a ser modelo de reconhecimento e imitação.
É o caso de Joyce, mas também de Guimarães Rosa. Ao estrondo que o mundo original e
irredutível desses autores provoca na literatura, segue-se um
período de repercussão e eco,
uma zona de influência e contaminação em que escritores e críticos medíocres tomam o que foi
invenção como modelo para
uma prosa inercial que já não
passa de cacoete ou para uma
crítica cuja cegueira a obriga a
seguir pelos caminhos já conhecidos.
"Meu Tio Roseno, a Cavalo",
de Wilson Bueno, parece, já pelo
título, ter consciência desse estado de coisas e querer brincar
com ele. Bueno escreve uma novela "à maneira de" Guimarães
Rosa e com isso, ao contrário da
imitação inconsciente, destaca o
caráter lúdico da prosa literária
num mundo tomado pela pobreza de espírito dos que vivem
à custa da literatura sem nada
ter a ver com ela, embora sobre
ela emitam opiniões peremptórias que embaralham os limites
entre a burrice e a má-fé.
"Meu Tio Roseno, a Cavalo" é
um pequeno livro a favor da literatura, que exalta a alegria da literatura e de fazer literatura, trazendo o foco de volta para o que
de fato importa. A paródia aqui
(como os pastiches em Proust)
tem o efeito lúdico e prazeroso,
embora quase didático, de levar
o leitor a reconhecer não um
modelo de literatura a ser seguido, mas o que é literatura nesse
modelo. O livro mostra que o
que conta são os livros, a alegria
e a dor de escrevê-los, e não as
mesquinharias da vida literária,
as vaidades e invejas de escritores e críticos preocupados demais com seus nomes e suas carreiras.
O "tio Roseno" do título remete inevitavelmente, e com algum
humor, a Rosa -e "a cavalo"
parece fazer referência à idéia de
tomar o corpo ou o espírito de
outro. Mas não é por ser paródica que essa fábula tropeira deixa
de ter a sua autonomia e de ser
original ao seu modo, ou de
emocionar ao contar uma história que desperta o interesse por
si, a despeito da paródia.
Em "Mar Paraguayo" (1992),
Wilson Bueno fazia uso de um
idioma híbrido, um portunhol
recheado de termos guaranis.
Em "Meu Tio Roseno, a Cavalo", a narrativa é apenas pontuada por palavras em guarani e há
um glossário ao final. O narrador -nascido em 1949, assim
como o próprio autor- conta a
história do tio, sanfoneiro e castrador de galo, cujo nome varia e
se desdobra ao longo do percurso -Roseno, Rosevalgo, Rosenando, Rosevero, Rosíris, Rosevelvo, Rosenão, Rosevindo
etc.- a cavalo, do Guairá ao Paranapanema, por sete dias, assombrado pelo desejo, pelas visões da guerra e do lobisomem,
só para ver a filha que está prestes a nascer e cujo nome ele segue repetindo: Andradazil, Andradazil.
Toda a narrativa fala de um
tempo mítico, anterior ao nascimento do narrador, um tempo
do não-ser, do qual ele tem nostalgia embora não o tenha vivido, e com o qual tenta superar os
próprios limites de seu nascimento e morte ("Há morte de
não-haver?"), pondo-se na pele
de um outro, narrando a história de um outro, o tio Roseno
("Ah, as saudades do tempo em
que eu nem era!"). Um tempo literário por excelência.
A vida é guerra, como sentencia de certa forma a cigana a
quem Roseno pergunta sobre a
filha que está prestes a nascer.
Mas também é morte e engano,
como ele vai terminar por compreender ao final dos sete dias a
cavalo para ver a menina. "Aonde há fugir se a guerra é no mundo? (...) A guerra é no sangue."
E é nesse tempo mítico, que é o
tempo da narrativa literária, e
que transborda para antes do
seu nascimento e para depois da
sua morte, que o narrador vai
buscar uma trégua para a guerra
que é a sua própria vida e mostrar curiosamente pela paródia,
para quem não sabe ou não pode ver, do que trata a verdadeira
literatura.
Meu Tio Roseno, a Cavalo
Autor: Wilson Bueno
Editora: 34
Quanto: R$ 16 (88 págs.)
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