São Paulo, sábado, 22 de julho de 2000


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RESENHA DA SEMANA
Fábula tropeira

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Alguns escritores, pela força e originalidade de seu estilo, ao mesmo tempo em que inauguram uma nova prosa e alargam a concepção de literatura, descortinando um novo mundo com seus livros, acabam produzindo um efeito paradoxal de fechamento sob sua atração e influência. O que na origem era invenção, desconhecido e descoberta passa a ser modelo de reconhecimento e imitação.
É o caso de Joyce, mas também de Guimarães Rosa. Ao estrondo que o mundo original e irredutível desses autores provoca na literatura, segue-se um período de repercussão e eco, uma zona de influência e contaminação em que escritores e críticos medíocres tomam o que foi invenção como modelo para uma prosa inercial que já não passa de cacoete ou para uma crítica cuja cegueira a obriga a seguir pelos caminhos já conhecidos.
"Meu Tio Roseno, a Cavalo", de Wilson Bueno, parece, já pelo título, ter consciência desse estado de coisas e querer brincar com ele. Bueno escreve uma novela "à maneira de" Guimarães Rosa e com isso, ao contrário da imitação inconsciente, destaca o caráter lúdico da prosa literária num mundo tomado pela pobreza de espírito dos que vivem à custa da literatura sem nada ter a ver com ela, embora sobre ela emitam opiniões peremptórias que embaralham os limites entre a burrice e a má-fé.
"Meu Tio Roseno, a Cavalo" é um pequeno livro a favor da literatura, que exalta a alegria da literatura e de fazer literatura, trazendo o foco de volta para o que de fato importa. A paródia aqui (como os pastiches em Proust) tem o efeito lúdico e prazeroso, embora quase didático, de levar o leitor a reconhecer não um modelo de literatura a ser seguido, mas o que é literatura nesse modelo. O livro mostra que o que conta são os livros, a alegria e a dor de escrevê-los, e não as mesquinharias da vida literária, as vaidades e invejas de escritores e críticos preocupados demais com seus nomes e suas carreiras.
O "tio Roseno" do título remete inevitavelmente, e com algum humor, a Rosa -e "a cavalo" parece fazer referência à idéia de tomar o corpo ou o espírito de outro. Mas não é por ser paródica que essa fábula tropeira deixa de ter a sua autonomia e de ser original ao seu modo, ou de emocionar ao contar uma história que desperta o interesse por si, a despeito da paródia.
Em "Mar Paraguayo" (1992), Wilson Bueno fazia uso de um idioma híbrido, um portunhol recheado de termos guaranis. Em "Meu Tio Roseno, a Cavalo", a narrativa é apenas pontuada por palavras em guarani e há um glossário ao final. O narrador -nascido em 1949, assim como o próprio autor- conta a história do tio, sanfoneiro e castrador de galo, cujo nome varia e se desdobra ao longo do percurso -Roseno, Rosevalgo, Rosenando, Rosevero, Rosíris, Rosevelvo, Rosenão, Rosevindo etc.- a cavalo, do Guairá ao Paranapanema, por sete dias, assombrado pelo desejo, pelas visões da guerra e do lobisomem, só para ver a filha que está prestes a nascer e cujo nome ele segue repetindo: Andradazil, Andradazil.
Toda a narrativa fala de um tempo mítico, anterior ao nascimento do narrador, um tempo do não-ser, do qual ele tem nostalgia embora não o tenha vivido, e com o qual tenta superar os próprios limites de seu nascimento e morte ("Há morte de não-haver?"), pondo-se na pele de um outro, narrando a história de um outro, o tio Roseno ("Ah, as saudades do tempo em que eu nem era!"). Um tempo literário por excelência.
A vida é guerra, como sentencia de certa forma a cigana a quem Roseno pergunta sobre a filha que está prestes a nascer. Mas também é morte e engano, como ele vai terminar por compreender ao final dos sete dias a cavalo para ver a menina. "Aonde há fugir se a guerra é no mundo? (...) A guerra é no sangue."
E é nesse tempo mítico, que é o tempo da narrativa literária, e que transborda para antes do seu nascimento e para depois da sua morte, que o narrador vai buscar uma trégua para a guerra que é a sua própria vida e mostrar curiosamente pela paródia, para quem não sabe ou não pode ver, do que trata a verdadeira literatura.


Meu Tio Roseno, a Cavalo      Autor: Wilson Bueno Editora: 34 Quanto: R$ 16 (88 págs.)




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