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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
Um simpósio pantagruélico
A leitura de Rabelais é um encontro com a língua em ebulição, numa celebração da vida e suas imperfeições
O LEITOR que se despede das
narrativas com começo,
meio e fim e embarca no
"Terceiro Livro dos Fatos e Ditos
Heróicos do Bom Pantagruel", de
François Rabelais (1494-1553), vê-se no centro de um torvelinho renovador que o choque titânico entre
oralidade e escrita, erudição e farsa,
realismo e fantasia, produziu.
Perseguido pela sanha teológica
dos doutores da Sorbonne, após o
sucesso de "Pantagruel, Rei dos Dipsodos" (1532) e "A Vida Mui Horrífica do Grande Gargantua, Pai de Pantagruel" (1534), assinados com o
anagrama Alcofribas, o ex-franciscano publicou, em 1545, o terceiro
dos cinco volumes da série protagonizada pelos versáteis gigantes, traduzido em boa edição brasileira.
Desde Mikhail Bakhtin, as raízes
populares da mescla estilística rabelaisiana, forjada na confluência entre o outono da Idade Média e o Renascimento, são repisadas e conhecidas. Assombra e diverte o efeito
realista de sua combinação original
entre a comicidade do grotesco e um
enciclopedismo abstruso. O mesmo
vale para a inédita liberdade lingüística que dá conta do casamento insólito entre uma celebração sem rodeios do corpo (quase sempre obscena e escatológica) e uma curiosidade filosófica que nunca descansa,
em meio à proliferação de catálogos
e a ironia das medidas descomunais.
Mais do que uma ortografia bizarra, a leitura de Rabelais é, para os
francófonos e os demais, um banho
de sol prolongado, um encontro
com a língua em estado de ebulição,
antes da vigilância redobrada de séculos sob as normas severas do classicismo. Em tempos de Novo Mundo, pela ótica de seus gigantes estranhos e familiares, o criador de Pantagruel mostra o cotidiano transfigurado, investindo contra uma visão
imobilista do universo e fazendo a
defesa revolucionária do mergulho
direto na riqueza e multiplicidade
do mundo dos fenômenos.
O humanismo é, pois, o tutano dos
ossos deste volume. Nele, depois de
uma breve e frustrada experiência
administrativa e um elogio da dívida
como motor da prosperidade, Panurge, malandro braço direito do
príncipe Pantagruel, sai em busca de
resposta para seu dilema (casar-se
ou não), consultando todo tipo de
sábio e adivinho na companhia de
seu amigo e soberano.
A culminância é um arremedo de
simpósio platônico (o modelo antigo como trampolim, e não limite)
em que os convivas -um médico,
um teólogo e um filósofo, já que o legista, processado, não comparece-
expõem as razões favoráveis ao
enlace, mas suas inevitáveis e indesejáveis conseqüências (a traição, o
roubo e a sujeição física), ante a um
futuro noivo que torce todas evidências em nome de uma disposição
prévia inflexível, a do casamento
mesmo que fadado ao fracasso. Neste contraponto irônico de vozes, Rabelais encontra o caminho para uma
celebração da vida que não fecha os
olhos a suas imperfeições, que faz do
excesso virtude.
O TERCEIRO LIVRO DOS FATOS E
DITOS HERÓICOS DO BOM
PANTAGRUEL
Autor: François Rabelais
Editora: Ateliê
Quanto R$ 72 (304 págs.)
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