São Paulo, sábado, 22 de julho de 2006

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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

Um simpósio pantagruélico

A leitura de Rabelais é um encontro com a língua em ebulição, numa celebração da vida e suas imperfeições

O LEITOR que se despede das narrativas com começo, meio e fim e embarca no "Terceiro Livro dos Fatos e Ditos Heróicos do Bom Pantagruel", de François Rabelais (1494-1553), vê-se no centro de um torvelinho renovador que o choque titânico entre oralidade e escrita, erudição e farsa, realismo e fantasia, produziu.
Perseguido pela sanha teológica dos doutores da Sorbonne, após o sucesso de "Pantagruel, Rei dos Dipsodos" (1532) e "A Vida Mui Horrífica do Grande Gargantua, Pai de Pantagruel" (1534), assinados com o anagrama Alcofribas, o ex-franciscano publicou, em 1545, o terceiro dos cinco volumes da série protagonizada pelos versáteis gigantes, traduzido em boa edição brasileira.
Desde Mikhail Bakhtin, as raízes populares da mescla estilística rabelaisiana, forjada na confluência entre o outono da Idade Média e o Renascimento, são repisadas e conhecidas. Assombra e diverte o efeito realista de sua combinação original entre a comicidade do grotesco e um enciclopedismo abstruso. O mesmo vale para a inédita liberdade lingüística que dá conta do casamento insólito entre uma celebração sem rodeios do corpo (quase sempre obscena e escatológica) e uma curiosidade filosófica que nunca descansa, em meio à proliferação de catálogos e a ironia das medidas descomunais.
Mais do que uma ortografia bizarra, a leitura de Rabelais é, para os francófonos e os demais, um banho de sol prolongado, um encontro com a língua em estado de ebulição, antes da vigilância redobrada de séculos sob as normas severas do classicismo. Em tempos de Novo Mundo, pela ótica de seus gigantes estranhos e familiares, o criador de Pantagruel mostra o cotidiano transfigurado, investindo contra uma visão imobilista do universo e fazendo a defesa revolucionária do mergulho direto na riqueza e multiplicidade do mundo dos fenômenos.
O humanismo é, pois, o tutano dos ossos deste volume. Nele, depois de uma breve e frustrada experiência administrativa e um elogio da dívida como motor da prosperidade, Panurge, malandro braço direito do príncipe Pantagruel, sai em busca de resposta para seu dilema (casar-se ou não), consultando todo tipo de sábio e adivinho na companhia de seu amigo e soberano.
A culminância é um arremedo de simpósio platônico (o modelo antigo como trampolim, e não limite) em que os convivas -um médico, um teólogo e um filósofo, já que o legista, processado, não comparece- expõem as razões favoráveis ao enlace, mas suas inevitáveis e indesejáveis conseqüências (a traição, o roubo e a sujeição física), ante a um futuro noivo que torce todas evidências em nome de uma disposição prévia inflexível, a do casamento mesmo que fadado ao fracasso. Neste contraponto irônico de vozes, Rabelais encontra o caminho para uma celebração da vida que não fecha os olhos a suas imperfeições, que faz do excesso virtude.

O TERCEIRO LIVRO DOS FATOS E DITOS HERÓICOS DO BOM PANTAGRUEL
    
Autor: François Rabelais
Editora: Ateliê
Quanto R$ 72 (304 págs.)


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