|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FERREIRA GULLAR
Difícil resposta
Eu pensava: de que outro modo pode a polícia entrar na favela, se é recebida com balas?
|
- A IRMÃ de minha faxineira, que mora na favela do Alemão -disse um vizinho-, mandou sua filha
de 12 anos de volta a Sergipe. Sabe
por quê? Ou fazia isso, ou a menina
ia se tornar amante de traficante.
- A garota estava namorando um
deles?
- Não, ela pediu que a mãe a tirasse de lá. As garotas bonitinhas não
têm escolha. Ou se entregam a eles,
ou morrem. E os pais ficam quietos.
Vão fazer o quê?
- Mal dá para acreditar que isso
aconteça no Rio de Janeiro. Meia
dúzia de bandidos exercendo um
domínio de terror sobre a população.
- Na favela do Pavão-Pavãozinho,
ali em Ipanema, o chefe do tráfico
mandou decapitar um desafeto,
chamou a turma dele e ficaram jogando futebol com a cabeça do cara.
Essa conversa me faz lembrar do
que aconteceu com um artista plástico chamado José Messias. Ele morava com a mãe na favela da Cidade
de Deus, num barraco onde conseguira montar seu acanhado ateliê de
gravura. Como era muito religioso, a
maioria de suas gravuras versava sobre temas bíblicos. Certa noite, dois
traficantes bateram à sua porta e
disseram que, a partir daquela data,
ele teria que ajudá-los na venda de
cocaína. Messias, embora assustado,
explicou-lhes que sua fé religiosa o
impedia de vender drogas.
-Ah, é? disse-lhe o bandido. Pois
vou te dar três dias. Se tua resposta
for não, a gente acaba contigo, com
tua mãe e toca fogo na casa.
Apavorados, Messias e a mãe pegaram as coisas que puderam e fugiram, foram morar na rua. Na época,
um jornal chegou a fazer uma matéria em que ele contava essa história.
Sentado numa calçada da Cinelândia, fazia desenhos que oferecia por
uns trocados a quem passava. A mãe
adoeceu e morreu; ele morreu também, algum tempo depois, na rua.
Assim agem os novos senhores da
população favelada. Cruéis como
bestas feras, armados até os dentes,
dominam os morros, onde impõem
o terror. Tomam a casa das pessoas,
executam quem não os obedece, estupram as garotas e extorquem os
comerciantes. Quem não se submete morre.
Isso começou na década de 80,
quando a polícia foi proibida de subir os morros, por ordem do então
governador Leonel Brizola. Os bandidos tiveram tempo de se organizar, de se armar e ocupar os pontos
estratégicos dos morros. De lá para
cá, o seu poder só fez se expandir e se
fortalecer. Como a pressão da opinião pública e da imprensa exigia
que alguma providência fosse tomada, alguns dos governos seguintes
tentaram desalojar os bandidos,
sem maiores resultados, mesmo
porque, àquela altura, os traficantes
já dispunham de grana suficiente
para subornar policiais e até juízes.
Quando alguma medida mais dura
era tomada, eles realizavam atentados terroristas, matando turistas
nas praias ou metralhando o edifício-sede do governo. Foi por essa
época que a polícia lançou mão de
um carro blindado que lhe permitia
fazer incursões nos morros para
prender os bandidos. Esse carro foi
apelidado de Caveirão, tornando-se
o símbolo da violência policial contra os favelados.
Muita gente boa embarcou nessa
e passou a odiar o carro blindado da
polícia. Também, quem é capaz de
defender algo com o nome de Caveirão? E eu pensava aqui com meus
botões: de que outro modo podem
os policiais entrar na favela, se os
bandidos, lá no alto, os recebem com
uma chuva de balas? Exigir que se
desista do tal Caveirão é o mesmo
que tomar o partido dos bandidos.
Certa vez, disse a um amigo que
odeia o Caveirão: você já pensou que
os policiais são gente como nós, têm
mulher, filhos e ganham pouco mais
de R$ 800 para arriscar a vida enquanto estamos aqui, em Ipanema,
tomando uísque? Por que acha que
eles devem subir as favelas, debaixo
de balas, sem qualquer proteção?
Sei que pega mal dizer essas coisas. Certo é ser contra a polícia, que é
corrupta e atrabiliária. E é verdade,
há policiais que colaboram com criminosos. Esses devem ser expulsos
e punidos como bandidos que são.
Mas são exceções, como são exceções os deputados, senadores e juízes corruptos. O que aconteceria se
todo o policiamento fosse retirado
da zona sul do Rio?
Depois que o governador Sérgio
Cabral Filho se dispôs a enfrentar o
crime organizado, dezenas de policiais foram assassinados fora de serviço. Houve protesto de alguma instituição defensora dos direitos humanos? Não. Parece que bandido
matar policial é normal, mesmo pelas costas.
Na ocupação do complexo do Alemão, morreu muita gente, inclusive
moradores. A morte de inocentes é
inaceitável. Deve então a polícia desistir de combater os traficantes e
deixar a população favelada sob seu
domínio de terror? Eis a questão.
Texto Anterior: Novelas da semana Próximo Texto: Coleção Folha: Rembrandt é tema no próximo domingo Índice
|