São Paulo, domingo, 22 de julho de 2007

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FERREIRA GULLAR

Difícil resposta


Eu pensava: de que outro modo pode a polícia entrar na favela, se é recebida com balas?

- A IRMÃ de minha faxineira, que mora na favela do Alemão -disse um vizinho-, mandou sua filha de 12 anos de volta a Sergipe. Sabe por quê? Ou fazia isso, ou a menina ia se tornar amante de traficante.
- A garota estava namorando um deles?
- Não, ela pediu que a mãe a tirasse de lá. As garotas bonitinhas não têm escolha. Ou se entregam a eles, ou morrem. E os pais ficam quietos. Vão fazer o quê?
- Mal dá para acreditar que isso aconteça no Rio de Janeiro. Meia dúzia de bandidos exercendo um domínio de terror sobre a população.
- Na favela do Pavão-Pavãozinho, ali em Ipanema, o chefe do tráfico mandou decapitar um desafeto, chamou a turma dele e ficaram jogando futebol com a cabeça do cara.
Essa conversa me faz lembrar do que aconteceu com um artista plástico chamado José Messias. Ele morava com a mãe na favela da Cidade de Deus, num barraco onde conseguira montar seu acanhado ateliê de gravura. Como era muito religioso, a maioria de suas gravuras versava sobre temas bíblicos. Certa noite, dois traficantes bateram à sua porta e disseram que, a partir daquela data, ele teria que ajudá-los na venda de cocaína. Messias, embora assustado, explicou-lhes que sua fé religiosa o impedia de vender drogas.
-Ah, é? disse-lhe o bandido. Pois vou te dar três dias. Se tua resposta for não, a gente acaba contigo, com tua mãe e toca fogo na casa.
Apavorados, Messias e a mãe pegaram as coisas que puderam e fugiram, foram morar na rua. Na época, um jornal chegou a fazer uma matéria em que ele contava essa história. Sentado numa calçada da Cinelândia, fazia desenhos que oferecia por uns trocados a quem passava. A mãe adoeceu e morreu; ele morreu também, algum tempo depois, na rua.
Assim agem os novos senhores da população favelada. Cruéis como bestas feras, armados até os dentes, dominam os morros, onde impõem o terror. Tomam a casa das pessoas, executam quem não os obedece, estupram as garotas e extorquem os comerciantes. Quem não se submete morre.
Isso começou na década de 80, quando a polícia foi proibida de subir os morros, por ordem do então governador Leonel Brizola. Os bandidos tiveram tempo de se organizar, de se armar e ocupar os pontos estratégicos dos morros. De lá para cá, o seu poder só fez se expandir e se fortalecer. Como a pressão da opinião pública e da imprensa exigia que alguma providência fosse tomada, alguns dos governos seguintes tentaram desalojar os bandidos, sem maiores resultados, mesmo porque, àquela altura, os traficantes já dispunham de grana suficiente para subornar policiais e até juízes.
Quando alguma medida mais dura era tomada, eles realizavam atentados terroristas, matando turistas nas praias ou metralhando o edifício-sede do governo. Foi por essa época que a polícia lançou mão de um carro blindado que lhe permitia fazer incursões nos morros para prender os bandidos. Esse carro foi apelidado de Caveirão, tornando-se o símbolo da violência policial contra os favelados.
Muita gente boa embarcou nessa e passou a odiar o carro blindado da polícia. Também, quem é capaz de defender algo com o nome de Caveirão? E eu pensava aqui com meus botões: de que outro modo podem os policiais entrar na favela, se os bandidos, lá no alto, os recebem com uma chuva de balas? Exigir que se desista do tal Caveirão é o mesmo que tomar o partido dos bandidos.
Certa vez, disse a um amigo que odeia o Caveirão: você já pensou que os policiais são gente como nós, têm mulher, filhos e ganham pouco mais de R$ 800 para arriscar a vida enquanto estamos aqui, em Ipanema, tomando uísque? Por que acha que eles devem subir as favelas, debaixo de balas, sem qualquer proteção?
Sei que pega mal dizer essas coisas. Certo é ser contra a polícia, que é corrupta e atrabiliária. E é verdade, há policiais que colaboram com criminosos. Esses devem ser expulsos e punidos como bandidos que são. Mas são exceções, como são exceções os deputados, senadores e juízes corruptos. O que aconteceria se todo o policiamento fosse retirado da zona sul do Rio?
Depois que o governador Sérgio Cabral Filho se dispôs a enfrentar o crime organizado, dezenas de policiais foram assassinados fora de serviço. Houve protesto de alguma instituição defensora dos direitos humanos? Não. Parece que bandido matar policial é normal, mesmo pelas costas.
Na ocupação do complexo do Alemão, morreu muita gente, inclusive moradores. A morte de inocentes é inaceitável. Deve então a polícia desistir de combater os traficantes e deixar a população favelada sob seu domínio de terror? Eis a questão.

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