São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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MÔNICA BERGAMO

Ana Ottoni/ Folha Imagem
A atriz, caracterizada para interpretar uma personagem do filme que tem 60 anos atravessa o deserto rumo ao set de filmagem


Dona Fernanda do deserto

Domingo, 15, era dia de descanso, mas às 6 horas Fernanda Montenegro já está acordada, saindo para trabalhar. Ela é a estrela de "Casa de Areia", filme dirigido por seu genro, Andrucha Waddington, e estrelado também por sua filha, Fernanda Torres, e que deve ser lançado em 2005.
 
Fernanda usa um sapato baixo, de sola de borracha, um vestido longo, listrado e surrado e uma mochila vermelha. Tem pressa: foi orientada pelo diretor a chegar ao camarim da maquiagem às 6h20. A atriz vai enfrentar uma jornada de pelo menos 12 horas de trabalho no set, instalado nas dunas dos Lençóis Maranhenses, o deserto entremeado por lagoas no Estado do Maranhão. "Ela nem toma água para não ter que fazer xixi e interromper as filmagens", conta o genro. Às vezes, começa a filmar às 17 horas e só termina às 5h.
 
Fernanda, ou "dona Fernanda", como todos da equipe de Andrucha a chamam, sai correndo da casinha de três quartos e uma sala em que está instalada, numa rua de areia da cidade de Santo Amaro do Maranhão, a localidade mais próxima das dunas. Para chegar lá, há dois meses, Fernanda viajou cinco horas de avião do Rio até São Luís, e outras cinco de carro, em estradas com longos trechos de terra. Santo Amaro fica a 8.000 km do Rio, onde ela vive.
 
No meio da filmagem, fez o caminho de volta para tratar de uma insolação. Uma semana depois, lá estava ela de novo, no meio do deserto. Quando não trabalha, Fernanda dorme. Levou um livro, "História das Orgias", que lê quando consegue vencer o cansaço.

Naquele domingo, viajou 30 minutos numa Pajero, em estradas de areia, até chegar à base de trabalho, espetada no meio das dunas dos Lençóis. Ela tem um camarim simples, com cama de ferro, um sofá de três lugares e um banheiro químico, daqueles em que não há descarga -os Lençóis são reserva ambiental, fiscalizada pelo Ibama. "Aqui não pode ter sabonete, pasta de dente, nada que seja químico", conta Fernanda, que limpa as mãos com álcool.
 
"Nossa, pareço uma louca", diz Fernanda ao se ver num espelho. A empresária dela, Carmen Mello, quer ir logo para a maquiagem. "Temos direito a um café da manhã", reclama Fernanda, colocando no prato ovo, pão, presunto e queijo. Em casa, só tinha tomado um chá.
 
Depois, a maquiagem. É o 21º filme da carreira da atriz, e nele ela interpreta quatro mulheres de gerações diferentes da mesma família. "Os arquétipos da nossa própria família baixam todos na gente", diz ela. "Mãe, avó, bisavó. Dos 60 anos para cá comecei a perceber isso."

Em outubro, ela completa 75 anos. "Nos 60, chamei todos os amigos." E agora, como se sente? "Você vê que a pista está acabando. Que a hora da chegada está mais perto", diz. "O que você pensa que é eterno, a sua juventude, acaba. Você tem perdas familiares muito grandes." Os olhos da atriz ficam marejados. Em sete anos, ela perdeu o pai, Vitorino, 91, a mãe, Carmen, 86, e uma irmã. Ganhou dois netos, Joaquim, 4, e Davi, 3.
 
Luiz Melodia, que no filme é parceiro de uma das personagens de Fernanda, fala com ela de antigos produtos, Leite de Rosas, Alfazema, "pomada Minâncora, lembra, Melodia?". "Lembro, claro. A gente passava embaixo do braço...".

Para filmar no meio do deserto maranhense, a produção de "Casa de Areia" praticamente ergueu uma cidade paralela em Santo Amaro. Convenceu o dono de uma pizzaria, a Maggiorasca, a montar uma "sucursal" na cidade. Instalou geradores de 1.400 kg nas dunas. Reformou e instalou ar-condicionado nas quatro pousadas e alugou quartos em outras 24 casas da cidade. Trouxe figurinos e materiais diversos em três carretas e levou 22 carros para a cidade -13 já quebraram, por causa da dificuldade de se andar nas dunas.
 
A chegada da equipe do filme foi uma espécie de "invasão estrangeira do bem": 120 pessoas do lugar foram empregadas na figuração, na construção de cenário e em funções como a de motorista -com diárias de R$ 10. A filmagem já precisou usar 100 jegues e 1.500 cabras, alugadas a R$ 1 cada uma. A economia da cidade se mexeu. Seis casas de comércio foram abertas e a farmácia, que faturava R$ 300, passou a ganhar até R$ 700 numa semana. A venda de camisinhas, inclusive, aumentou.
 
São 12h30 quando os atores saem do camarim e vão até o set de filmagem. Além do café da manhã, às 6h, Fernanda tomou uma água-de-coco e comeu três bolachas. Chega ao set, é acomodada na rede de uma barraca. O sol nos Lençóis é tão forte que até o cantor Seu Jorge, que é negro, descascou. Venta tanto por lá que a areia gruda no rosto, "entra na cavidade dos dentes", segundo a atriz.
 
Ela já não vê a hora de voltar ao Rio. "Quando você chega [aos Lençóis Maranhenses], os olhos enchem d'água, a natureza é linda. Seis semanas depois, tem a sensação de uma prisão." Ela não tem lido revistas, não vê TV e às vezes esquece em que dia da semana está. "É uma colônia penal muito bonita, com boa comida e boa hospedagem, mas não deixa de ser uma colônia penal."
 
A volta de Fernanda estava marcada para a próxima semana.


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