São Paulo, terça-feira, 22 de agosto de 2006

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FERNANDO BONASSI

Elite blindada


A mulher esfrega seus acessórios de diamante nos vidros das janelas, para despedaçá-los

SÃO DOIS e vêm de um lugar onde as mercadorias são exibidas, em peças únicas, feitas à mão, sem preços fixados em etiquetas fora de moda e que ficam distribuídas displicentemente para simular o aconchego de um lar.
É apenas uma loja onde poucos têm coragem, ou patrimônio, para entrar... Ao saírem, eles têm sacolas nas mãos calejadas e cravejadas por anéis de matrimônio e alianças que os afastaram dos trabalhos manuais.
Formam um desses pares protocolares das revistas semanais de sacanagem, com uma mulher muito maior do que o desejo masculino e muito mais bem proporcionada do que os poucos raciocínios apolíticos, ou apolíneos, expelidos pelo casal.
Ocupados, com as compras abraçadas, nem se cumprimentam ao se aproximarem do carro estacionado. É um blindado. Assim como o cercado de seguranças que se forma na proporção da insegurança que eles sentem.
Sentir, eles sentem muito nesses tempos. É como o frio de uma espada afiada na espinha, um revólver apontado para a testa ou uma corda esticada no pescoço... Por isso esta operação paramilitar para acompanhar tais possíveis alvos civis mais ou menos jurados de morte por todos esses inimigos anônimos que caminham a esmo, esmolando a miséria de um emprego ou se empregando feito escravos por trocados.
Preferiam helicóptero, pudessem cair do céu num estacionamento. Afinal, sempre quiseram estacionar e permanecer a arriscar para desenvolver.
Acontece que as vagas estão cada vez menores e escassas. As massas de problemas se avolumam em reivindicações de pão, terra, liberdade e... Bem, o fato para eles é que há gente demais para que gente de seu nível tenha paz.
Seu nível é alto. Como se subissem tanto que agora tivessem "medo de descer". É a sua mentira mais sincera, forjada em meio às facadas dos psicanalistas horistas. Na verdade têm esse medo histérico e histórico de cair sem poder se levantar para descansar outra vez. Assim se dedicam a empatar o muito que têm para que nenhum bem possa escapar nas escapadelas de uma geração para outra.
Perpetuam-se como os mais vivos na sobrevivência dos mais fortes! É um bem genético que atinge um mísero gênero de brasileiros: são herdeiros e são primos, num casamento consangüíneo muito apreciado pelas famílias endogâmicas.
Só que algo está por acontecer...
Inesperadamente, quando os dois se põem solenemente sentados em seus bancos acolchoados com suspiros, os sistemas eletrônicos de proteção começam a funcionar em convulsão, prendendo a ambos do lado de dentro.
No início parece um mal-entendido. Como se os softwares tivessem se enganado e pudessem entender e reverter a sua decisão... Mas não. Esquece-se que as máquinas são burras, ainda mais burras do que aqueles que as inventaram.
A cada segundo que se passa, ganham os juros de seu capital e perdem os mimos de festas, batizados e eventos inesquecíveis...
Estão ali, em plena rua da amargura, e os funcionários que normalmente ficam por fora dos eventos mais importantes se revezam nas tentativas de por fim ao tormento irritante dos patrões...
Não demora e a mulher esfrega sofregamente seus acessórios de diamante nos vidros das janelas, imaginando poder fazê-los em pedaços, como faz com todos os mais fracos, ou menos trouxas, do que ela. Acontece que o produto importado é melhor que o nacional e o resultado final é que ela fica com as unhas destroçadas e poças de sangue nas cutículas. O marido, que até então se impacientava, finalmente se manifesta. Primeiro ordena que os tirem dali. Em seguida exige que façam o necessário. Depois manda que resolvam o problema, que ajam e destruam as fechaduras onde tinham se internado...
Contra todo esforço da força bruta, no entanto, as travas enterradas por todos os lados não cedem...
O homem consulta seu relógio a prova de grande profundidade, mas sabe que está naufragando à superfície. É como um pesadelo em que tenta se explicar, e a língua se enrola em justificativas incompreensíveis. O sofrimento se torna evidente, mas como os vidros são espelhados ninguém se comove com o próprio reflexo. O homem perde toda a compostura de sua cultura, boa educação e grita por socorro.
Desesperada com o desespero dele, a mulher o imita...
Ainda assim ninguém pode ouvi-los...Devem ter ar para o quê? No máximo... Dez minutos?


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