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MARCELO COELHO
Drogas? Visite nossa drogaria
Vivemos esmagados por uma máquina de acumulação que atua também dentro de nós
ÁVIDO, COMO sempre, por novas formas de experiência, e
mais do que nunca atento à
aventura de viver, este articulista
comunica, a quem interessar possa,
que se tornou proprietário de uma
escova de dentes movida a pilha, que
é de fácil manuseio e tem durabilidade indeterminada.
No começo, essas escovas custavam meio caro. Em menos de um
ano, creio eu, tornaram-se baratíssimas, e são daqueles objetos que se
penduram perto dos caixas da farmácia para fisgar o consumidor, à
espera do comportamento costumeiramente chamado pelos marqueteiros de "compra impulsiva".
Não foi o meu caso. Gosto de resistir a superficialidades. Acontece
que, freqüentador obstinado de
"farmácias e drogarias" (qual a diferença, afinal?), acumulei certa pontuação num desses programas de fidelidade ao consumidor.
Pontuação baixa, para dizer a verdade. Mas, depois de já ter sido contemplado com uma sanduicheira
elétrica e um aparelho para medir
pressão, e sem interesse por estojos
de primeiros socorros e livros de receitas, restavam-me poucas alternativas de premiação.
À escova, portanto. Foi bem-sucedido o primeiro teste. Comecei movendo o aparelho como se fosse uma
escova de dentes comum, mas percebi que o segredo reside em mantê-lo imóvel por bastante tempo em cada, digamos, "área de operação",
agindo por meio de deslocamentos
não mais contínuos, e sim "seqüenciais" ao longo da minha perplexa
arcada dentária.
O ganho, não serei vaidoso se o
disser, foi visível. O que era uma tosca faxina aquática dos dentes tornou-se polimento pontual e científico. Passo da vassoura e do esfregão
para a era da enceradeira elétrica.
Tornei-me, além disso, meu próprio dentista; o ruído sempre desagradável daquele motorzinho do
consultório agora já faz parte do
meu cotidiano. A escova faz todo tipo de barulho, variando conforme a
zona de incidência; vibra entre meus
dedos, oscilando de modo paradoxal
entre a ascese e a pornografia.
Já sei que vai acontecer com a escova elétrica aquilo que todo usuário de computador ou dono de carro
com direção hidráulica conhece
bem. Confortos antes inexistentes
tornam-se bens de primeira necessidade, ninguém se conformará em
voltar ao passado, e qualquer dia
desses estarei pegando o carro, de
noite, numa emergência, para comprar pilhas ou cerdas novas para o
aparelho de que nunca precisei.
Ah, sim, é por isso que a escova ficou barata. É como nas impressoras
a jato de tinta e nos aparelhos de
barba com três lâminas paralelas: o
lucro não vem da máquina, mas do
refil.
Não é um pouco o que fazem os
traficantes? Pelo menos é o que se
diz: as primeiras doses vêm de graça,
o famoso pipoqueiro da porta do colégio as oferece como um brinde, até
instalar-se a dependência química e
psicológica no consumidor.
A dependência, aliás, já vinha de
antes, no meu caso pelo menos. Foi
graças à minha fidelidade à drogaria
que acumulei os pontos necessários
para o brinde.
"Parabéns! Você se tornou mais
um escovadito de nosso programa
de estímulo à saúde bucal da população." É a rede de farmácias Droga
Leve cumprindo mais uma vez seu
papel de empresa cidadã.
Exagero um pouco, sem dúvida,
mas é mais ou menos desse modo
que o consumo se torna conquista
pessoal e o lucro, filantropia.
Depois a gente estranha quando
campanhas de outro tipo não dão
certo. Refiro-me a todos os esforços
pensados no sentido de prevenir a
obesidade, preservar a natureza, reduzir o consumo de carbono, álcool
ou cocaína.
É que todas essas campanhas, para azar do planeta e de todos nós,
precisam alertar para a necessidade
do "menos", numa sociedade programada o tempo inteiro para o
"mais". Vivemos esmagados por
uma máquina de acumulação constante; o pior é que ela também funciona dentro de nós.
Não sou completamente pessimista. Logo se inventarão novos
produtos despoluidores, novas drogas contra drogas, que talvez evitem
o desconforto de diminuir o ritmo
de nossas próprias necessidades.
Em vez de bicicletas (quem se aventuraria a usá-las em São Paulo?), um
anel gravitacional de filtros solares
flutuando na estratosfera. Chama-se a isso progresso.
Quem sabe, afinal, se minha escova de dentes movida a pilha não economiza a água do planeta? Espero
que, pelo menos, economize a conta
do dentista.
coelhofsp@uol.com.br
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