São Paulo, sábado, 22 de agosto de 1998

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ANÁLISE
É de Machado! Uma típica 'bala de estalo'!

VALENTIM FACIOLI
especial para a Folha

Faltando um mês para os 90 anos da morte do velho Machadão (com perdão da intimidade!), eis que temos uma crônica magnífica recém-exumada da "Gazeta de Notícias" por Daniela Mantarro Callipo, que trabalha em Assis, coincidentemente.
Isso até cheira a sortilégios do estrambótico bibliômano das "Memórias Póstumas", em que fica previsto que, depois de 70 anos de esquecimento, as memórias de Brás Cubas, "exemplar único", seriam reencontradas "por acaso, no pardieiro de um alfarrabista".
Em 1991, Haroldo Maranhão descobriu o conto "Terpsícore", que saíra em 1886 também na "Gazeta de Notícias", e o publicou no jornal "O Globo", do Rio de Janeiro. Esse conto mereceu uma linda edição em livro pela editora Boitempo, de São Paulo, em 1996, com prefácio de Davi Arrigucci Jr.
A presente crônica, assinada por Lélio, parece ter mesmo escapado das pesquisas anteriores, o que pode ser visto, no retardo de sua circulação, como um "prêmio" para os atuais leitores de Machado de Assis, nestes 90 anos da morte. É um consolo.
Essa crônica guarda enorme semelhança estrutural com a prática machadiana nesse gênero jornalístico, em especial com as outras das "Balas de Estalo" já pacificamente identificadas e republicadas nas obras de Machado de Assis.
O tom do texto é, sem dúvida, de fina ironia, mas não só isso, porque chega à sátira amena, mas decidida; de fato, encontra na palavra de um preto velho e, por suposto, analfabeto ("filósofo sem livros") a "fórmula prática, tangível, segura, sublime, o fundo dos fundos, a substância das substâncias" para resolver o problema eleitoral "daquele ano de calamidades", no Império escravocrata.
Parece, contudo, que o mais machadiano dos aspectos estruturais da crônica são os negaceios e artimanhas do narrador. Aí a coisa parece inconfundível. O narrador, evidentemente ficcional, assume uma postura principal, que é a de "conselheiro" de mistura com "médico, sendo também um ilustrado, atento e patriota leitor de jornal, que procura a "paz pública' e quer evitar a "pancadaria eleitoral'". E não se esquece de dialogar com o leitor.
Essa mistura parece formar, em todo caso, um tipo, nem sempre muito diferente, de inúmeros outros tipos de narrador/personagem das "Balas de Estalo". Parece também que esse tipo de narrador misturado (ou volúvel, na leitura de Roberto Schwarz), não sendo nada confiável, se autojustifica ao mesmo tempo que também se descredencia, na matéria disparatada com que procura o "remédio único e verdadeiro" que oferece aos seus "concidadãos".
Assim, ele recorre a um pequeno episódio da disputa de fronteira com a Argentina (que, "se é verdadeiro, ignoro") e dele extrai uma relação maliciosa entre república e império, bem como, por outra analogia, entre "penachos e emolumentos", relativizando tudo para insinuar que o sr. Fulano e o sr. Sicrano, candidatos, não guardam entre si nenhuma diferença significativa, pois o eleitor pode carregar as bandeiras de ambos, "uma na mão, outra no bolso".
Enfim, liberais e conservadores seriam, de fato, da "mesma igreja", como esclarece "atarantado", mas sibilinamente, o preto velho.
Essa é um aposição muito conhecida (e tematizada) de Machado de Assis, por exemplo em "Esaú e Jacó".
Creio que se pode atestar ainda a autoria machadiana do texto (salvo um drible de gênio) pela linguagem elegante, precisa e pela sintaxe entre a venaculização e certo "abrasileiramento" da colocação pronominal, por exemplo.
Sobressai ainda o uso, que acredito raro, do termo "conseguintemente", em lugar de consequentemente, que também comparece no derradeiro capítulo das "Memórias Póstumas", o celebérrimo "Das Negativas".
Finalmente, vale assinalar o uso do gancho jornalístico para prender a atenção do leitor, sendo o remédio prometido só revelado ao final. E, ainda, que a reforma eleitoral (ou remédio), tematizada no conto "Sereníssima República", também mereça outra crônica galhofeira e satírica do mesmo Lélio, no dia 9 de janeiro, logo depois das eleições, bem como inúmeras referências à politicagem cotidiana na maioria das crônicas das "Balas de Estalo".


Valentim Facioli é professor de literatura brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP



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