São Paulo, Quarta-feira, 22 de Setembro de 1999
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MARCELO COELHO

Milagre que experimento cotidianamente

Não acredito em milagres, mas há um milagre que experimento cotidianamente e que, se pensarmos bem, é digno de maravilhamento e gratidão. Refiro-me ao fato de, a cada manhã, acordar na mesma cama, no mesmo quarto, no mesmo mundo em que estive na noite anterior.
Imagine se não fosse assim, se um dia fôssemos escravos no Egito, para acordar na manhã seguinte como traficantes de ópio na Malásia ou quakers na Nova Inglaterra. A vida se transformaria em sonho: Schopenhauer descrevia o sonho como páginas folheadas de um livro que, quando despertos, lemos em ordem.
Mais provavelmente, a vida se transformaria em pesadelo. A certeza de que o mundo à nossa volta subsiste e de que nós subsistimos -de que sou eu mesmo quem vai ao banheiro situado no mesmo lugar da véspera- é, por si só, uma felicidade.
O argumento é meio conservador. Comemorar o mundo "tal qual é", falar em milagre quando o que se trata é de rotina (um texto quase místico de Hannah Arendt incorre nessa tentação), tudo isso tem muito de antiutópico, termina celebrando a seca no Nordeste, o modelo pedagógico da Febem, o governo Fernando Henrique.
E quantas vezes não acordamos infelizes? Depois de um breve lapso, lembramo-nos da noite anterior, na qual uma esperança amorosa se frustrou, uma recusa foi ouvida, uma vergonha se registra, um fracasso se confirma, a dureza do real se impõe. E o passado continua no presente, pesando, como toda realidade pesa sobre nós, numa decepção silenciosa a atestar que o pesadelo vivido foi real.
Nessa circunstância, acordar de manhã pode ser motivo de infelicidade, algo de totalmente adverso às apologias que vínhamos fazendo da continuidade do mundo. Este texto vai ficando inconclusivo.
A dúvida não é diferente, em todo caso, da clássica pergunta: vale a pena viver? Não precisamos nos preocupar muito com ela. Mesmo os escravos do Egito encaravam a morte como uma má notícia. Sinal de que acordar num catre de prisão é, ainda assim, melhor do que não acordar de jeito nenhum. Que reencontrar a mesma desgraça todo dia tende a ser melhor que topar com estranhezas sempre renovadas.
Escrevo tudo isso por causa do filme de Kubrick, "De Olhos Bem Fechados", sobre o qual já se escreveu demais. A ambiguidade a que me referia, entre sonho e conservadorismo, parece-me contudo um dos temas principais do filme, e valeria a pena gastar um pouco mais de papel e tinta a esse respeito.
Baseado num livro de Arthur Schnitzler, que não li, mas que se chama "Traumnovelle", o filme de Kubrick é fascinante pelo que a trama apresenta de improvável. O personagem vivido por Tom Cruise tem muito daquilo que todos nós temos quando sonhamos: a mistura entre total liberdade e total submissão.
Tudo, quando sonhamos, obedece teoricamente ao nosso desejo. O curioso é que isso não significa um acréscimo de liberdade, mas justamente a sensação de que somos jogados num mundo totalmente alheio a nosso controle. É como se cada pessoa que sonhasse virasse o objeto, a vítima, o escravo de seus próprios e desconhecidos caprichos.
O desejo da mulher, a confissão da esposa (Nicole Kidman) a respeito de suas fantasias de adultério, funciona como uma caixa de Pandora para o protagonista. Basta que um desejo se confesse dentro do casamento para que o marido reaja com 300 fantasias diferentes. O resultado é meio tolo, como as cenas do clube libertino em que Tom Cruise vai parar.
Mas o extraordinário no filme de Kubrick é o tom, a "voz" da narração. Tudo se passa como um sonho, porque não existe, a rigor, um fio conduzindo a história até o seu fim. Os acasos se sucedem, e o próprio personagem do filme está numa situação de espectador: vê o filme relativo aos desejos da esposa e vive o filme de seus desejos, como quem sonha.
Nada mais natural do que a conversa final entre Tom Cruise e Sidney Pollack (não por acaso, um diretor de filmes trabalhando como ator), na qual todos os medos e remorsos do protagonista se dissipam: foi tudo um sonho...
O que traz alívio (conservadorismo) e decepção (utopismo) ao espectador. O filme celebra, afinal, a estabilidade do casamento, e nos faz torcer por essa instituição. Mas se baseia no fascínio que há em perder-se dela.
Uma observação para terminar. Chamou-me a atenção o número de árvores de Natal, todas parecidíssimas, no filme. É como se cada árvore, com seus presentes, fosse a promessa de um desejo realizado. Ao mesmo tempo, é símbolo de vida familiar, de renúncia e estabilidade.
Quando, bem no fim do filme, a filha de Tom Cruise agita uma boneca da Barbie na loja, pedindo o brinquedo como presente de Natal, a ironia de Kubrick se revela: nossas instituições, nosso mundo "careta", se funda no desejo, na fome de aventura sexual. Mas é como se fôssemos incapazes de estar à altura desse projeto. Entre os presentes de Natal e as caixas de Pandora, ficamos na mesma, aliviados até porque nossos desejos não se cumpriram.


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