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MARCELO COELHO
Brasileiro
Às vezes leio coisas na internet, esqueço-me de imprimir ou de anotar a fonte e depois
já não sei se a notícia era de verdade, se era trote ou se foi puro
delírio de minha parte.
Por exemplo: noticiou-se que já
está escalado o novo personagem
que irá simbolizar a tal campanha publicitária do "eu sou brasileiro e não desisto nunca". Trata-se de um jovem, ex-menino de
rua, que agora estuda, trabalha e
tem sucesso profissional, o que
certamente constitui um bom
exemplo para todos. Acontece
que, antes disso, o rapaz se destacara por ter tentado fugir mais de
200 vezes da Febem.
Será que eu estava lendo algum
site humorístico? Qual o maior
exemplo de persistência cívica:
superar as deficiências sociais de
origem ou tentar fugir repetidas
vezes da instituição que supostamente cuida do "bem-estar do
menor"?
Os publicitários poderiam até
organizar uma cena bonita. Penso no encontro de dois brasileiros
"que não desistem nunca" -a
saber, o jovem fugitivo e o seu carcereiro, também dotado, imagino, de admirável tenacidade na
manutenção da ordem prisional.
Para terminar o anúncio, um close na bandeira do Brasil, com o
lema tremulando: "Ordem" (o
carcereiro) e "progresso" (o trânsfuga, agora self-made man). Põe
self-made nisso, aliás.
Não, eu devia estar delirando
quando li. De qualquer modo, a
campanha se presta a incontáveis
aplicações e sugere muitos personagens. Contém sua dose de homenagem ao presidente Lula, que
é brasileiro e só foi eleito depois de
várias tentativas.
Desse ângulo, entretanto, o lema do "não desisto nunca" abriga generosamente políticos de todas as tendências: a célebre e, em
geral, malquista obstinação de
Paulo Maluf, por exemplo, passa
a receber uma coloração bastante
favorável.
Mais do que no mundo competitivo da política ou do esporte
-onde o lema tem sido evocado
a qualquer pretexto-, é no mundo econômico que a idéia do "não
desisto nunca" parece fazer mais
sentido. Não penso propriamente
no cidadão desempregado: imagino que a frase lhe seja de pouca
inspiração. Se todos os dias ele sai
de casa à procura de emprego, se
sempre bate com a cara na porta
da fábrica, se teima em abrir a
página de anúncios do jornal, obviamente se trata de alguém que
"não desiste nunca"; saber que essa é uma característica do bom
brasileiro não é nenhum alívio.
O lema encontra eco mais provável na mentalidade do pequeno
empresário, que reclama dos fiscais e dos impostos e, ainda assim,
mantém o seu negócio, à falta de
melhor alternativa. É também a
voz do profissional liberal, pelos
mesmos motivos e, acima de tudo, é a voz dos profissionais de
publicidade, que, principalmente
em períodos de retração econômica, conhecem o valor das técnicas
da insistência, da redundância e
da repetição.
Desemprego? Retração econômica? Faço uso de termos infelizes, um tanto ultrapassados pelos
fatos: as notícias em torno do
aquecimento da economia se
acumulam há meses nos jornais.
Acho que não é preciso ser muito
pessimista, entretanto, para ter
em mente a quantidade de vezes,
nos últimos 20 anos, que os sinais
de retomada do desenvolvimento
logo eram desmentidos por algum
imprevisto internacional de grandes proporções.
O sobe-e-desce dos juros parece
feito de encomenda para desorientar as expectativas gerais.
"Agora vai!", pensamos todos nós,
que não esquecemos os índices de
crescimento econômico dos tempos do milagre -coisa acima de
10% ao ano. "Não foi desta vez",
repete-se a cada ano que passa.
É assim que, longe de expressar
um dinamismo heróico e construtivo, a idéia do "não desisto nunca" tem um componente de muito
mais passividade do que faz supor
à primeira vista. Do que é que eu
não desisto nunca? De tocar minha vida, contra ventos e marés?
Mas a alternativa seria o suicídio,
a ruína, o naufrágio.
Ou será que é mais abstrato o
apelo desse slogan? "Eu sou brasileiro, não desisto nunca de acreditar no país e de acreditar no que
dizem dele", a saber: que este é o
país do futuro, que dias melhores
virão, que a esperança é a última
que morre... O brasileiro que não
desiste nunca é aquele que continua apostando na Mega Sena,
por exemplo, apesar de reduzidíssimas as chances de vitória. Trata-se de um esperançoso, mas não
propriamente de um lutador.
A vantagem do slogan está precisamente aí: faz da paciência e
da submissão do brasileiro um
prodígio de combatividade e inconformismo. Todos se reconhecem como maratonistas olímpicos
sem que precisem sair do lugar.
A não ser em caso de emigração
-o que não é fenômeno tão raro,
aliás-, o brasileiro ainda não desistiu daqui. Transforma-se em
mérito moral uma contingência
geográfica. Do mesmo modo, no
nacionalismo tradicional, o Brasil
sempre foi destinado a um grande
futuro por força de suas florestas,
rios, praias e cadeias de montanhas.
A atual voga nacionalista reproduz os mitos de sempre. Reveste-se, entretanto, de um verniz
mais bajulatório, publicitário e
"democrático", em comparação a
iniciativas de outros tempos. "Eu
sou brasileiro e não desisto nunca": o lema traduz para a primeira pessoa o famigerado e antigo
mote da ditadura: "Brasil, ame-o
ou deixe-o".
Os marqueteiros de hoje não
impõem ao público um suposto e
truculento "amor à pátria". Apostam no nosso narcisismo, a que
chamam de auto-estima, mas o
velho e o novo slogan têm o mesmo subtexto: desistir você não vai,
deixar o país você não pode, de
modo que é melhor você agüentar
tudo quietinho. Sorria: você
agüenta tão bem que terminará
se orgulhando disso.
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