São Paulo, quarta-feira, 22 de setembro de 2004

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MARCELO COELHO

Brasileiro

Às vezes leio coisas na internet, esqueço-me de imprimir ou de anotar a fonte e depois já não sei se a notícia era de verdade, se era trote ou se foi puro delírio de minha parte.
Por exemplo: noticiou-se que já está escalado o novo personagem que irá simbolizar a tal campanha publicitária do "eu sou brasileiro e não desisto nunca". Trata-se de um jovem, ex-menino de rua, que agora estuda, trabalha e tem sucesso profissional, o que certamente constitui um bom exemplo para todos. Acontece que, antes disso, o rapaz se destacara por ter tentado fugir mais de 200 vezes da Febem.
Será que eu estava lendo algum site humorístico? Qual o maior exemplo de persistência cívica: superar as deficiências sociais de origem ou tentar fugir repetidas vezes da instituição que supostamente cuida do "bem-estar do menor"?
Os publicitários poderiam até organizar uma cena bonita. Penso no encontro de dois brasileiros "que não desistem nunca" -a saber, o jovem fugitivo e o seu carcereiro, também dotado, imagino, de admirável tenacidade na manutenção da ordem prisional. Para terminar o anúncio, um close na bandeira do Brasil, com o lema tremulando: "Ordem" (o carcereiro) e "progresso" (o trânsfuga, agora self-made man). Põe self-made nisso, aliás.
Não, eu devia estar delirando quando li. De qualquer modo, a campanha se presta a incontáveis aplicações e sugere muitos personagens. Contém sua dose de homenagem ao presidente Lula, que é brasileiro e só foi eleito depois de várias tentativas.
Desse ângulo, entretanto, o lema do "não desisto nunca" abriga generosamente políticos de todas as tendências: a célebre e, em geral, malquista obstinação de Paulo Maluf, por exemplo, passa a receber uma coloração bastante favorável.
Mais do que no mundo competitivo da política ou do esporte -onde o lema tem sido evocado a qualquer pretexto-, é no mundo econômico que a idéia do "não desisto nunca" parece fazer mais sentido. Não penso propriamente no cidadão desempregado: imagino que a frase lhe seja de pouca inspiração. Se todos os dias ele sai de casa à procura de emprego, se sempre bate com a cara na porta da fábrica, se teima em abrir a página de anúncios do jornal, obviamente se trata de alguém que "não desiste nunca"; saber que essa é uma característica do bom brasileiro não é nenhum alívio.
O lema encontra eco mais provável na mentalidade do pequeno empresário, que reclama dos fiscais e dos impostos e, ainda assim, mantém o seu negócio, à falta de melhor alternativa. É também a voz do profissional liberal, pelos mesmos motivos e, acima de tudo, é a voz dos profissionais de publicidade, que, principalmente em períodos de retração econômica, conhecem o valor das técnicas da insistência, da redundância e da repetição.
Desemprego? Retração econômica? Faço uso de termos infelizes, um tanto ultrapassados pelos fatos: as notícias em torno do aquecimento da economia se acumulam há meses nos jornais. Acho que não é preciso ser muito pessimista, entretanto, para ter em mente a quantidade de vezes, nos últimos 20 anos, que os sinais de retomada do desenvolvimento logo eram desmentidos por algum imprevisto internacional de grandes proporções.
O sobe-e-desce dos juros parece feito de encomenda para desorientar as expectativas gerais. "Agora vai!", pensamos todos nós, que não esquecemos os índices de crescimento econômico dos tempos do milagre -coisa acima de 10% ao ano. "Não foi desta vez", repete-se a cada ano que passa.
É assim que, longe de expressar um dinamismo heróico e construtivo, a idéia do "não desisto nunca" tem um componente de muito mais passividade do que faz supor à primeira vista. Do que é que eu não desisto nunca? De tocar minha vida, contra ventos e marés? Mas a alternativa seria o suicídio, a ruína, o naufrágio.
Ou será que é mais abstrato o apelo desse slogan? "Eu sou brasileiro, não desisto nunca de acreditar no país e de acreditar no que dizem dele", a saber: que este é o país do futuro, que dias melhores virão, que a esperança é a última que morre... O brasileiro que não desiste nunca é aquele que continua apostando na Mega Sena, por exemplo, apesar de reduzidíssimas as chances de vitória. Trata-se de um esperançoso, mas não propriamente de um lutador.
A vantagem do slogan está precisamente aí: faz da paciência e da submissão do brasileiro um prodígio de combatividade e inconformismo. Todos se reconhecem como maratonistas olímpicos sem que precisem sair do lugar.
A não ser em caso de emigração -o que não é fenômeno tão raro, aliás-, o brasileiro ainda não desistiu daqui. Transforma-se em mérito moral uma contingência geográfica. Do mesmo modo, no nacionalismo tradicional, o Brasil sempre foi destinado a um grande futuro por força de suas florestas, rios, praias e cadeias de montanhas.
A atual voga nacionalista reproduz os mitos de sempre. Reveste-se, entretanto, de um verniz mais bajulatório, publicitário e "democrático", em comparação a iniciativas de outros tempos. "Eu sou brasileiro e não desisto nunca": o lema traduz para a primeira pessoa o famigerado e antigo mote da ditadura: "Brasil, ame-o ou deixe-o".
Os marqueteiros de hoje não impõem ao público um suposto e truculento "amor à pátria". Apostam no nosso narcisismo, a que chamam de auto-estima, mas o velho e o novo slogan têm o mesmo subtexto: desistir você não vai, deixar o país você não pode, de modo que é melhor você agüentar tudo quietinho. Sorria: você agüenta tão bem que terminará se orgulhando disso.


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