São Paulo, sábado, 22 de setembro de 2007

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Crítica/poesia/prosa narrativa

Saramago pré-Nobel faz poesia ruim

Também visto como prosa, "O Ano de 1993" é ainda pior; enredo alegórico faz referências claras ao fim do salazarismo

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Ano de 1993" foi escrito por José Saramago em 1975, quando ainda era conhecido, em Portugal, como cronista e poeta. Se alguém se decepcionou consigo próprio por não saber que ele havia sido poeta antes de se tornar o romancista padrão-Nobel que se tornou, não é o caso de buscar alguma "rehab" para mal informados, pois a notícia é falsa: José Saramago não é poeta. "O Ano de 1993" é prova cabal disso. É tão ruim como poesia que até deixa supor que possa ter mérito como prosa. Mas esta é uma chance teórica apenas. Como prosa é ainda pior.
Claro, há quem pense diferente. Maria Alzira Seixo, valente apologista do Nobel para Saramago, atualmente passada para as fileiras do arqui-rival, Lobo Antunes, escreveu: ""O Ano de 1993" é um livro de teor inesperado, intrigante (...) e sedutor na sua indecisão estrutural, na sua feição alegórica e na indecisão de caminhos interpretativos que pode abrir".
A "indecisão estrutural" diz respeito à sua forma versicular, sem pontuação, de tamanho regular, e à divisão no que poderiam ser 30 estâncias, ou 30 capítulos de uma narrativa, uma vez que deixam perceber um enredo. A "feição alegórica" também não se pode negar: tudo o que se canta, ou conta, são eventos que até uma criança perceberia que querem significar outros. Por exemplo, o texto fala de um país que, no ano do título, foi ocupado por invasores dotados de potentes computadores e animais mecânicos, ambos movidos a carne humana, que torturam, escravizam e matam sem razão os pobres habitantes, obrigados então a fugir para as florestas e viver como brutos.
Alongando-se o tempo dessas misérias, os habitantes vão deixando de ter "união carnal", e o fim da humanidade parece avizinhar-se. Esqueci de contar que os computadores antropófagos só não toleram "nenhuma parcela de cérebro", pois o pensamento é mortal para eles. Certo dia, dá-se que, inadvertidamente, engolem "uma pasta acinzentada contendo algumas centenas de milhões de neurônios". Ao mesmo tempo, um homem incendeia o próprio braço para obter luz naquele mundo frio e escuro, e ainda "um homem e uma mulher", ameaçados pela "grande escuridão" que "redobrou o medo", se abraçaram, súplices, e, como estavam apoiados numa árvore, esta, apiedada deles, se abriu para recebê-los.
Mais tarde se dirá que "foi vista uma árvore sair da floresta andando sobre as raízes e fazer seus ramos laços e lanças e dardos das folhas agudas". Todos os eventos conjugados fizeram com que os homens recobrassem a coragem, atacassem os invasores e seus computadores malvados e reconquistassem, sem armas, a não ser "toscos paus arrancados dificilmente aos ramos mais baixos das árvores", e sem "nenhuma proteção a não ser a da noite", o caloroso mundo humano.
Submetida a uma história dessas, aquela criança estudiosa facilmente perceberia tratar-se da alegoria da redenção de um povo subjugado por máquinas graças à razão e ao amor sensual pela vida. Soubesse ela que, no ano anterior ao da confecção do texto, 1974, tinha havido a revolução que pôs fim à ditadura salazarista em Portugal, então, sem dúvida, perceberia que aqueles versículos sentenciosos celebravam a revolução e a reconquista da liberdade do povo português.
Contudo, apenas resumi o enredo, e isso não parece ser justo, uma vez que poesia não é feita de sua história, mas da composição de seus versos. Tentei poupá-los, mas se querem provas evidenciais, deixo-os com o pequeno florilégio (leia ao lado), que dedico ao heróico casal que regenerou a espécie. Se algum dia a Ilustrada tiver a idéia de fazer uma dessas deliciosas enquetes sobre os piores versos do século passado, já adianto o meu voto.


ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp)


O ANO DE 1993
Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 32 (128 págs.)
Avaliação: ruim



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