São Paulo, terça-feira, 22 de setembro de 2009

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Irving Kristol, 1920-2009


O "neoconservador" não se esgota no "realismo" da direita isolacionista americana


"NEOCONSERVADOR" é insulto. Inevitável. Quando falamos dos "neoconservadores", a nossa imaginação delirante incendeia-se com as chamas do inferno. E o inferno, segundo os especialistas, é Bush, Dick Cheney, Donald Rumsfeld ou Condoleezza Rice.
Sempre gostei dessa simplória versão dos fatos. Motivo simples: nem Bush, nem Cheney, nem Rumsfeld, nem Rice eram, ideologicamente falando, "neoconservadores". Desde logo porque o "neoconservadorismo" é uma filosofia que não se esgota nas aventuras militares do Afeganistão ou do Iraque. Mas o que é afinal o "neoconservadorismo"? A resposta encontra-se no seu patrono fundador, Irving Kristol, acabado de falecer aos 89 anos. Kristol nasceu no Brooklyn pobre de 1920.
Estudante do City College de Nova York, aí começou o seu namoro com a esquerda. Mas não com uma esquerda qualquer: com Trotsky, um pensador que lhe legou um certo "idealismo revolucionário" e, talvez mais importante, uma disposição ferozmente antistalinista. Kristol acabaria por abandonar o essencial desse trotskismo de juventude para sucumbir às inevitáveis ilusões "liberais" do pós-Segunda Guerra.
Mas seria na década de 60 que Kristol, juntamente com Daniel Bell ou Nathan Glazer, lançaria as sementes do "neoconservadorismo".
A "Grande Sociedade" de Lyndon Johnson, com os seus generosos programas de "assistência social", não produzia os resultados esperados. Pelo contrário: se a ideia era combater a pobreza e o crime com quantidades massivas de dinheiro público, ela apenas gerava mais pobreza, mais crime e, pormenor fundamental, contribuía para o caldo niilista da contracultura, que prometia destroçar o tecido moral da sociedade americana.
Adicionalmente, crescia o perigo da União Soviética. Um perigo a que os "liberais" respondiam com silêncio ou complacência, sem compreenderem o que estava verdadeiramente em causa na Guerra Fria: a sobrevivência das sociedades livres perante a tirania comunista.
Nas palavras conhecidas de Kristol, um "neoconservador" não era mais do que "um liberal assaltado pela realidade". Mas é um erro pensar que o "neoconservador", na concepção de Kristol, se limitava a reagir perante os desastres práticos da política "liberal".
O "neoconservador", até pelo prefixo, reage também contra o conservadorismo tradicional americano, de feição libertária, que via no Estado um perigo permanente. Kristol tenta desarmar essa visão: na economia, na cultura e na política externa. Na economia, Kristol critica e distancia-se do dogma de Hayek, segundo o qual o crescimento do Estado potencia um "caminho de servidão". Para os "neoconservadores", não existem sociedades políticas toleráveis sem um Estado forte e bem mais intervencionista do que o "guarda-noturno" de que falava Herbert Spencer.
É também por isso que o Estado não deve ser neutro perante diferentes concepções do bem. O Estado tem um papel na proteção de valores morais que são relevantes para a sociedade. A regulação da pornografia ou o combate a várias formas de "autonomia fundacional" (eutanásia, aborto livre etc.) são apenas exemplos das preocupações éticas "neoconservadoras".
E, finalmente, o "neoconservador" não se esgota no "realismo" da direita isolacionista americana. Os interesses dos Estados Unidos podem implicar intervenções militares fora das fronteiras geográficas da república, sobretudo quando potências aliadas se encontram sob ameaça. A participação dos Estados Unidos na Segunda Guerra era a evocação preferencial de Kristol e um dos motivos da sua admiração, bastante heterodoxa entre a direita, por Franklin Roosevelt.
Conclusão: aplausos efusivos para os "neoconservadores"? Não vou tão longe: a minha costela libertária não o permite. Gosto de um Estado pequeno; gosto de um Estado moralmente neutro, exceto em casos extremos de desumanidade; e, em política externa, prefiro Kissinger a Woodrow Wilson.
De certa forma, e como dizia Michael Oakeshott, acredito que é sempre possível ser um conservador em política, mas um radical em todo o resto. Sim, a frase sempre provocou alguns arrepios entre os "neoconservadores" e não foi por acaso que Irving Kristol, na sua revista "Encounter", se recusou a publicar Oakeshott por não concordar com o conservadorismo "mínimo" do filósofo inglês.
Fez mal. O ceticismo de Oakeshott teria feito bem a Kristol e a seus herdeiros.

jpcoutinho@folha.com.br


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