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São Paulo, quarta-feira, 22 de outubro de 2003

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HISTÓRIA

Pesquisa examina dias que se seguiram à morte de Alexandre Vannucchi Leme, em 1973, durante o regime militar

"Cale-se" contextualiza luta estudantil

MARCELO RUBENS PAIVA
ARTICULISTA DA FOLHA

"Cale-se" narra a história dos 70 turbulentos dias que se seguiram à morte sob tortura do estudante de geologia da USP, Alexandre Vannucchi Leme, em 17 de março de 1973, então com 22 anos, e a mobilização para denunciá-la, que culminou num show do cantor Gilberto Gil no campus da mesma universidade.
Nele, Gil pôde cantar a censurada parceria com Chico Buarque, "Cálice": "Num gesto claro de desobediência civil, ele [Gil] levantou assuntos delicados até para quem arrostava o regime militar", diz o jornalista Caio Túlio Costa no recém-lançado "Cale-se", livro que resulta de um ano de pesquisa do autor sobre o tema.
A tragédia gerou um basta. Uniu a sociedade civil contra um regime que fugia de seus propósitos. Conduziu a figura incontestável do cardeal de São Paulo, d. Paulo Evaristo Arns -que realizou uma missa para o estudante na catedral da Sé-, para a frente que se formava contra a tortura.
Levou entidades a uma postura crítica diante do regime que, antes, toleravam. Reunificou uma esquerda dividida e a reaproximou do movimento cultural que antes vaiou em festivais. Enterrou de vez a luta armada e ampliou a aliança com o MDB (Movimento Democrático Brasileiro).
Segundo Costa, testemunha dos acontecimentos, apenas um livro, o do brasilianista Kenneth Serbin ("Diálogo nas Sombras"), analisa ou documenta o período:
"Alguns fatos ajudaram a fazer deste ano [1973] um momento de virada. Serbin foi o único historiador a apontar a missa de Vannucchi Leme como o "primeiro protesto antigovernamental de grande porte da década de 70"."
A morte de Leme talvez seja tão emblemática quanto a do jornalista Vladimir Herzog, morto dois anos depois no mesmo DOI-Codi, que implicou um racha definitivo entre os militares.
Quarenta e três estudantes da USP são presos na primavera de 73. Procurava-se uma ponte entre o clandestino movimento estudantil e a cambaleada ALN (Ação Libertadora Nacional). Dois deles nunca deixaram a prisão: Leme e Ronaldo Mouth Queiróz.
Os militares criaram uma farsa. Leme teria sido atropelado por um caminhão. Foi enterrado numa cova rasa, sem caixão. A decomposição do corpo foi rápida. Só em 1983 a família recuperou os ossos -Leme foi enterrado em Sorocaba, onde nasceu. Ela foi indenizada pelo Estado nos anos 90.
Leme, ou Minhoca, caiu num sábado. A notícia chegou em meio à recepção dos calouros. Os estudantes da geologia adoravam o colega festeiro e não se conformaram. Outros estudantes foram presos. De sala em sala, denunciaram tais prisões.
"Tinha a exata sensação de que, daquele jeito, o pessoal do centro acadêmico não ia conseguir nada, ou melhor, iria assustar ainda mais os estudantes. Sim, eles precisavam fazer alguma coisa. E essa coisa precisava ser diferente."
Então, houve uma polarização: algumas correntes achavam que os alunos deviam privilegiar a luta pela qualidade do ensino, outras afirmavam que deveriam denunciar o autoritarismo. A idéia era transformar a USP num ponto de resistência para todo o Brasil. A pretensão era grande. Deu certo.
"É um momento de inflexão, em que o sistema se desequilibrou. Os estudantes receberam um apoio grande. Havia articulações, mas, ali, teve um momento catalisador. As mortes de terroristas até então não catalisaram. Depois, Leme não era terrorista, era um estudante", diz Costa. "A morte dele foi um baita erro do ponto de vista do regime. Eles erraram e tentaram corrigir. Viram o erro logo no início, quando inventaram a história do atropelamento, que eles costumavam usar. É o momento em que muitos se mobilizam de forma pacífica, tentando se reaproximar dos movimentos de massa", afirma.


CALE-SE. De: Caio Túlio Costa. Lançamento: A Girafa. Quanto: R$ 43 (352 págs.)


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