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RODAPÉ
Fábulas nômades
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Decidi tornar-me, também
eu, um elo da anônima cadeia
sem fim pela qual as fábulas se
perpetuam, elos que não são jamais puros instrumentos, transmissores passivos, mas seus verdadeiros "autores"." A frase escrita
por Italo Calvino no prefácio de
suas "Fábulas Italianas" se aplica
perfeitamente a "Palavra Cigana",
da antropóloga Florencia Ferrari.
Os livros têm dimensões diferentes. Calvino era um escritor renomado quando reuniu 80 narrativas disseminadas pelos dialetos
de seu país. Florencia adotou esse
mesmo procedimento de reescrever relatos populares para chegar
a seus "seis contos nômades"
-resultado mais modesto, mas
nem por isso menos encantador.
"Palavra Cigana" pertence à coleção "Mitos do Mundo" e se dirige ao público infanto-juvenil,
com belíssimas ilustrações de Stephan Doitschinoff, colagens que
reproduzem o caráter caleidoscópico da cultura cigana. A composição em mosaico também é perceptível, porém, sob a singeleza
dos textos. Para escrevê-los, a autora consultou cerca de 300 contos, identificando temas recorrentes e mesclando-os em relatos
exemplares.
Florencia tomou contato com
sua matéria-prima durante pesquisa sobre o cigano no imaginário ocidental. O trabalho resultou
numa dissertação de mestrado e
aparece de modo sumário no posfácio de "Palavra Cigana", que
descreve a plasticidade da língua
romani, a chegada das caravanas
originárias da Índia e do Oriente
Médio às cidades européias, as
perseguições que remontam à Inquisição e culminam nos campos
de concentração nazistas.
A lembrança do Holocausto,
aliás, torna inevitável a tentativa
de buscar um paralelo entre as figuras do cigano nômade e do "judeu errante", ambos representando a imagem de um "outro", ao
mesmo tempo próximo e perturbador: perturbador porque recusa a proximidade; próximo porque desperta nos gentios (os não-judeus) ou nos gajões (os não-ciganos) o desejo da alteridade.
Florencia Ferrari, entretanto, é
cuidadosa com tais aproximações, restritas à associação imaginária de judeus e ciganos a práticas como roubo de crianças e bruxaria. Numa breve entrevista concedida a esse colunista, ela distingue o fundo bíblico do judaísmo
(e do antijudaísmo) da impossibilidade de se tratar de uma tradição religiosa cigana.
O mesmo se aplica aos relatos.
"Eu não faria uma diferenciação
muito marcada entre os contos ciganos e os contos contados por ciganos. Não há o estudo de um
"corpus" que permita falar de uma
tradição narrativa." Assim, numa
das versões de "O Cigano e o Gigante", a personagem que amedronta o adversário por meio da
astúcia ecoa tanto a história de
Davi e Golias quanto a fábula dos
irmãos Grimm em que um pequeno alfaiate mata sete moscas e
borda a frase "matei sete de uma
vez" no seu cinturão, passando-se
por valente.
Ou seja, nessa cultura sem noção de origem ou ancestralidade,
as apropriações dão a tônica -e
inserem as próprias simbioses da
autora nessa longa cadeia de
"contação de histórias". Mas se os
contos de "Palavra Cigana" variam de uma atmosfera mais realista para um registro fantástico,
pode-se notar algumas constantes, como a prática do engodo, a
relação com o elemento não-cigano e o respeito aos mortos -representando uma liminaridade,
um ponto de passagem em que o
Outro define o Mesmo.
Em "O Morto que Pagou Sua
Dívida", um cigano cuja memória
é conspurcada por um credor volta à terra para ajudar quem honrou suas dívidas. E em "São Jorge e os Ciganos", o santo ouve de
Deus que os ciganos devem viver
por suas próprias leis -o que ironicamente o impede de cobrá-los
pelo logro de que havia sido vítima, numa fábula que sanciona a
licença moral de uma cultura que
se afirma por um código sempre
estrangeiro.
Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço
Palavra Cigana
Autor: Florencia Ferrari
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 35 (90 págs.)
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