São Paulo, sábado, 22 de outubro de 2005

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RODAPÉ

Fábulas nômades

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Decidi tornar-me, também eu, um elo da anônima cadeia sem fim pela qual as fábulas se perpetuam, elos que não são jamais puros instrumentos, transmissores passivos, mas seus verdadeiros "autores"." A frase escrita por Italo Calvino no prefácio de suas "Fábulas Italianas" se aplica perfeitamente a "Palavra Cigana", da antropóloga Florencia Ferrari.
Os livros têm dimensões diferentes. Calvino era um escritor renomado quando reuniu 80 narrativas disseminadas pelos dialetos de seu país. Florencia adotou esse mesmo procedimento de reescrever relatos populares para chegar a seus "seis contos nômades" -resultado mais modesto, mas nem por isso menos encantador.
"Palavra Cigana" pertence à coleção "Mitos do Mundo" e se dirige ao público infanto-juvenil, com belíssimas ilustrações de Stephan Doitschinoff, colagens que reproduzem o caráter caleidoscópico da cultura cigana. A composição em mosaico também é perceptível, porém, sob a singeleza dos textos. Para escrevê-los, a autora consultou cerca de 300 contos, identificando temas recorrentes e mesclando-os em relatos exemplares.
Florencia tomou contato com sua matéria-prima durante pesquisa sobre o cigano no imaginário ocidental. O trabalho resultou numa dissertação de mestrado e aparece de modo sumário no posfácio de "Palavra Cigana", que descreve a plasticidade da língua romani, a chegada das caravanas originárias da Índia e do Oriente Médio às cidades européias, as perseguições que remontam à Inquisição e culminam nos campos de concentração nazistas.
A lembrança do Holocausto, aliás, torna inevitável a tentativa de buscar um paralelo entre as figuras do cigano nômade e do "judeu errante", ambos representando a imagem de um "outro", ao mesmo tempo próximo e perturbador: perturbador porque recusa a proximidade; próximo porque desperta nos gentios (os não-judeus) ou nos gajões (os não-ciganos) o desejo da alteridade.
Florencia Ferrari, entretanto, é cuidadosa com tais aproximações, restritas à associação imaginária de judeus e ciganos a práticas como roubo de crianças e bruxaria. Numa breve entrevista concedida a esse colunista, ela distingue o fundo bíblico do judaísmo (e do antijudaísmo) da impossibilidade de se tratar de uma tradição religiosa cigana.
O mesmo se aplica aos relatos. "Eu não faria uma diferenciação muito marcada entre os contos ciganos e os contos contados por ciganos. Não há o estudo de um "corpus" que permita falar de uma tradição narrativa." Assim, numa das versões de "O Cigano e o Gigante", a personagem que amedronta o adversário por meio da astúcia ecoa tanto a história de Davi e Golias quanto a fábula dos irmãos Grimm em que um pequeno alfaiate mata sete moscas e borda a frase "matei sete de uma vez" no seu cinturão, passando-se por valente.
Ou seja, nessa cultura sem noção de origem ou ancestralidade, as apropriações dão a tônica -e inserem as próprias simbioses da autora nessa longa cadeia de "contação de histórias". Mas se os contos de "Palavra Cigana" variam de uma atmosfera mais realista para um registro fantástico, pode-se notar algumas constantes, como a prática do engodo, a relação com o elemento não-cigano e o respeito aos mortos -representando uma liminaridade, um ponto de passagem em que o Outro define o Mesmo.
Em "O Morto que Pagou Sua Dívida", um cigano cuja memória é conspurcada por um credor volta à terra para ajudar quem honrou suas dívidas. E em "São Jorge e os Ciganos", o santo ouve de Deus que os ciganos devem viver por suas próprias leis -o que ironicamente o impede de cobrá-los pelo logro de que havia sido vítima, numa fábula que sanciona a licença moral de uma cultura que se afirma por um código sempre estrangeiro.


Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço

Palavra Cigana
    
Autor: Florencia Ferrari
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 35 (90 págs.)


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