São Paulo, sábado, 22 de outubro de 2005

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ROMANCE

Norte-americano cria "roman à clef" para retratar geração de artistas

John Updike "pinta" Jackson Pollock e Greenwich Village

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Imagine um pintor beberrão que, entre uma mijada na lareira de mármore de uma rica dona de galeria e uma altercação etílica entre confrades, crie em um velho celeiro gelado de Long Island várias obras-primas na base de respingos sobre telas deitadas ao chão. São esses trabalhos em grande escala que enfim põem, nos anos de 1950, os EUA na vanguarda da arte mundial, libertando-os dos faróis europeus.
Se você disse Jackson Pollock (1912-1956) está certo. Apesar de o personagem chamar-se Zack McCoy, é no pai do expressionismo abstrato que John Updike pensou quando escreveu seu último romance, "Busca o Meu Rosto" -e ele não faz segredo disso, indicando a origem numa nota inicial, embora ressalte que se trate de "uma obra de ficção".
Mas não é só Jackson Pollock que comparece neste autêntico "roman à clef" de Updike. Está aqui toda a turma que durante e após a Segunda Guerra reunia-se nos bares boêmios de Greenwich Village, em Nova York, para encher a cara, preconizar a expressão do "eu" e das formas puras, meter lenha na pintura narrativa e em Salvador Dalí.
Eles detestavam a auto-exposição e a celebridade. Reza a lenda que Pollock desmoronou depois do artigo da revista "Life" e do documentário de Hans Namuth. Mas foi essa mesma turma que, depois de se refugiar por temporadas nas areias e charcos do sudeste do Estado de Nova York, titubeante ou não, foi alçada inevitavelmente à fama.

Willem de Kooning
É fácil ver Willem de Kooning em Onno de Genoog e suas pinturas semifigurativas, diante das quais muitos de sua época torciam o nariz. Ou Barnett Newman no judeu Bernie Nova, de monóculo e indefectível bigode, que, com suas telas forjadas a partir de traços simples, separando grandes porções de cores, influenciou a geração seguinte. Ou ainda Robert Motherwell em Roger Merebien ("mother" está para "mère" como "well" para "bien" -"mãe" e "bem" em inglês e francês, respectivamente), com suas telas repletas de "imensos feijões esmagados, repetidos de modo obsessivo".
A história toda é contada, num único dia, pela viúva de Zack, a também pintora Hope Chafetz, a uma repórter que ela recebe em sua nova residência, em Vermont. Aliás, Hope não é Lee Krasner, mulher de Pollock. A personagem se casa mais duas vezes, uma das quais com um imaginário papa da pop art e outra com um milionário financista, sobre quem também discorre na entrevista. Estamos no século 21, e a velha Hope, "a um passo do túmulo", encara Kathryn, a repórter magra e nervosa, vestida de negro, como a "aparição da morte num filme de Bergman".
Não por acaso, a jovem Kathryn é pintada de modo pouco simpático. A entrevista não deixa de ser um balanço existencial de Hope.
Mas, tendo a artista testemunhado o que testemunhou, o colóquio converte-se ainda num exame da arte e do modo de vida do século anterior, num embate agastado contra as novas sensibilidades, representadas não só pela repórter, mas também pelo outro único "personagem" em cena: um pequeno e implacável gravador Sony.

Expressionismo abstrato
É, portanto, interessante notar que os discursos dos membros do expressionismo abstrato, talvez o último suspiro da arte logicamente ligada (como oposição) aos procedimentos renascentistas, muitas vezes se prendam ao romance como colagens desencaixadas -mais ao gosto pós-moderno do que moderno.
Bem diferente, nesse sentido, da forma como se desenvolve a teoria de Adrian Leverkühn, em "Doutor Fausto". Emprestada por Thomas Mann a Schönberg, a especulação está (para usarmos um termo associado às trevas de uma outra era) "organicamente" integrada ao personagem.
No romance de John Updike, ao contrário, vozes diferentes parecem falar através de Hope, e dos outros artistas, com a provável exceção de McCoy. Mas então McCoy/Pollock não tinha muita teoria a mostrar: ele era a arte bruta em ação.
A técnica do bricabraque se amplia quando passamos ao segundo marido de Hope: Guy Holloway, o projetista da pop art. Ele não é exatamente um artista reconhecível, mas uma junção de todos: fabrica as bandeiras norte-americanas de Jasper Johns, a cama em suspensão de Robert Rauschenberg, os hambúrgueres de lona de Claes Oldenburg, os filmes pornôs de Andy Warhol e os grandes painéis inspirados nas histórias em quadrinhos de Roy Lichenstein.
Guy é um monstro inverossímil, uma grande vingança de Updike contra o apetite devorador dos artistas da geração de 1960. Guy se revela falso, superficial, ideológico e desprovido de intensidade humana, como a arte fabril que produz. Perto dele, Kathryn pulsa com vida, apesar do olhar tendencioso (e, assim, unilateral) com que Hope a vê. Como a arte que descreve, a busca que Updike propõe no título caminha para um impasse: bela e poderosa, incita menos soluções do que contradições, mais vias de acesso do que de saída.


Busca o Meu Rosto
    
Autor: John Updike
Tradução: Paulo Henriques Britto
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 46,50 (320 págs.)


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