|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ROMANCE
Norte-americano cria "roman à clef" para retratar geração de artistas
John Updike "pinta" Jackson Pollock e Greenwich Village
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Imagine um pintor beberrão
que, entre uma mijada na lareira de mármore de uma rica dona
de galeria e uma altercação etílica
entre confrades, crie em um velho
celeiro gelado de Long Island várias obras-primas na base de respingos sobre telas deitadas ao
chão. São esses trabalhos em
grande escala que enfim põem,
nos anos de 1950, os EUA na vanguarda da arte mundial, libertando-os dos faróis europeus.
Se você disse Jackson Pollock
(1912-1956) está certo. Apesar de o
personagem chamar-se Zack
McCoy, é no pai do expressionismo abstrato que John Updike
pensou quando escreveu seu último romance, "Busca o Meu Rosto" -e ele não faz segredo disso,
indicando a origem numa nota
inicial, embora ressalte que se trate de "uma obra de ficção".
Mas não é só Jackson Pollock
que comparece neste autêntico
"roman à clef" de Updike. Está
aqui toda a turma que durante e
após a Segunda Guerra reunia-se
nos bares boêmios de Greenwich
Village, em Nova York, para encher a cara, preconizar a expressão do "eu" e das formas puras,
meter lenha na pintura narrativa e
em Salvador Dalí.
Eles detestavam a auto-exposição e a celebridade. Reza a lenda
que Pollock desmoronou depois
do artigo da revista "Life" e do documentário de Hans Namuth.
Mas foi essa mesma turma que,
depois de se refugiar por temporadas nas areias e charcos do sudeste do Estado de Nova York, titubeante ou não, foi alçada inevitavelmente à fama.
Willem de Kooning
É fácil ver Willem de Kooning
em Onno de Genoog e suas pinturas semifigurativas, diante das
quais muitos de sua época torciam o nariz. Ou Barnett Newman
no judeu Bernie Nova, de monóculo e indefectível bigode, que,
com suas telas forjadas a partir de
traços simples, separando grandes porções de cores, influenciou
a geração seguinte. Ou ainda Robert Motherwell em Roger Merebien ("mother" está para "mère"
como "well" para "bien" -"mãe"
e "bem" em inglês e francês, respectivamente), com suas telas repletas de "imensos feijões esmagados, repetidos de modo obsessivo".
A história toda é contada, num
único dia, pela viúva de Zack, a
também pintora Hope Chafetz, a
uma repórter que ela recebe em
sua nova residência, em Vermont.
Aliás, Hope não é Lee Krasner,
mulher de Pollock. A personagem
se casa mais duas vezes, uma das
quais com um imaginário papa da
pop art e outra com um milionário financista, sobre quem também discorre na entrevista. Estamos no século 21, e a velha Hope,
"a um passo do túmulo", encara
Kathryn, a repórter magra e nervosa, vestida de negro, como a
"aparição da morte num filme de
Bergman".
Não por acaso, a jovem Kathryn
é pintada de modo pouco simpático. A entrevista não deixa de ser
um balanço existencial de Hope.
Mas, tendo a artista testemunhado o que testemunhou, o colóquio converte-se ainda num
exame da arte e do modo de vida
do século anterior, num embate
agastado contra as novas sensibilidades, representadas não só pela
repórter, mas também pelo outro
único "personagem" em cena:
um pequeno e implacável gravador Sony.
Expressionismo abstrato
É, portanto, interessante notar
que os discursos dos membros do
expressionismo abstrato, talvez o
último suspiro da arte logicamente ligada (como oposição) aos
procedimentos renascentistas,
muitas vezes se prendam ao romance como colagens desencaixadas -mais ao gosto pós-moderno do que moderno.
Bem diferente, nesse sentido, da
forma como se desenvolve a teoria de Adrian Leverkühn, em
"Doutor Fausto". Emprestada
por Thomas Mann a Schönberg, a
especulação está (para usarmos
um termo associado às trevas de
uma outra era) "organicamente"
integrada ao personagem.
No romance de John Updike, ao
contrário, vozes diferentes parecem falar através de Hope, e dos
outros artistas, com a provável exceção de McCoy. Mas então
McCoy/Pollock não tinha muita
teoria a mostrar: ele era a arte bruta em ação.
A técnica do bricabraque se amplia quando passamos ao segundo marido de Hope: Guy Holloway, o projetista da pop art. Ele
não é exatamente um artista reconhecível, mas uma junção de todos: fabrica as bandeiras norte-americanas de Jasper Johns, a cama em suspensão de Robert
Rauschenberg, os hambúrgueres
de lona de Claes Oldenburg, os filmes pornôs de Andy Warhol e os
grandes painéis inspirados nas
histórias em quadrinhos de Roy
Lichenstein.
Guy é um monstro inverossímil,
uma grande vingança de Updike
contra o apetite devorador dos artistas da geração de 1960. Guy se
revela falso, superficial, ideológico e desprovido de intensidade
humana, como a arte fabril que
produz. Perto dele, Kathryn pulsa
com vida, apesar do olhar tendencioso (e, assim, unilateral) com
que Hope a vê. Como a arte que
descreve, a busca que Updike
propõe no título caminha para
um impasse: bela e poderosa, incita menos soluções do que contradições, mais vias de acesso do
que de saída.
Busca o Meu Rosto
Autor: John Updike
Tradução: Paulo Henriques Britto
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 46,50 (320 págs.)
Texto Anterior: Saiba mais: Autor navega na contracorrente da onda latina Próximo Texto: Vitrine brasileira Índice
|