São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2006

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FERREIRA GULLAR

Fora da História


A obra de Emygdio tem uma carga psíquica que só quem viveu outros "estados do ser" revela

HÁ 60 ANOS , em setembro de 1946, Nise da Silveira criava, no Centro Psiquiátrico Nacional, no Rio, o ateliê de pintura que daria origem ao Museu de Imagens do Inconsciente, hoje uma referência fundamental para os que estudam as relações da arte com a esquizofrenia.
O museu foi concebido com o propósito de preservar obras que, realizadas por doentes mentais, constituíssem material de estudo do seu mundo interior, de difícil acesso e compreensão. Não era intenção de Nise formar ali artistas mas, sim, lançar mão da linguagem simbólica da arte para ampliar as possibilidades de superação da enfermidade psíquica. Não obstante, desde o primeiro momento, os trabalhos de alguns dos pacientes despertaram o interesse do crítico francês Léon Degand, então diretor do MAM de São Paulo, que propôs expô-los. Essa mostra provocou uma polêmica entre os críticos Mário Pedrosa -que defendia o valor artístico das obras- e Quirino Campofiorito -que o negava. Na verdade, um debate que continuaria ainda por muitos anos, dividindo a opinião de artistas e críticos.
Mas não vale a pena, agora, reabrir essa discussão, mesmo porque o que hoje muitas vezes se apresenta como arte não cabe em nenhuma definição possível. A estranheza, que levava alguns críticos a negar valor artístico àquelas obras, parece coisa normalíssima em face das manifestações atuais. Tampouco quero perder meu tempo com isso.
Não demorou muito para que o ateliê de pintura da dra. Nise revelasse talentos surpreendentes como os de Emygdio, Rafael e Diniz. Era de fato um outro universo que se revelava em suas pinturas e desenhos. Vendo-os, convenci-me de que, se a condição de esquizofrênicos imprimia a suas obras uma atmosfera peculiar, inusitada, não era ela que os qualificava como artistas. Noutras palavras, entendi que um artista pode ser esquizofrênico mas nem todo esquizofrênico será artista e, dentro dessa mesma visão, há esquizofrênicos que são bons artistas e outros que são geniais, como é o caso de Emygdio de Barros. Essa é uma afirmação difícil de demonstrar, mas não sei de que outro modo qualificar a força expressiva daquele universo de formas ao mesmo tempo familiares e estranhas, transfiguradas na sua expressão visionária. As cores, que surgem como relâmpagos do fundo da noite -noite psíquica?-, pertencem a uma outra dimensão do imaginário. Há, em seus quadros, uma carga psíquica de tal densidade que certamente só quem, como ele, visitou outros "estados do ser" pode revelar.
Emygdio, que estava internado há 25 anos sem falar uma só palavra, foi trabalhar no ateliê de encadernação. Um dia, porém, Almir Mavignier, que monitorava o atelier de pintura, encontrou sobre sua mesa um desenho que o deixou impressionado. Descobriu que o autor era o paciente magrinho chamado Emydgio e o trouxe para o ateliê de pintura. Dos desenhos, Emygdio passou aos quadros, ricos de matéria e variações cromáticas, dando início a uma produção espantosa. Havia uma fosforescência subjacente à matéria cromática de seus quadros que ninguém sabia explicar.
Um dia, próximo ao Natal, Nise perguntou a Emygdio que presente gostaria de ganhar e ele respondeu: "Um guarda-chuva". Ela concluiu que ele desejava ir embora. "Mas ele vai parar de pintar", advertiu Almir. Decidiram, então, fazer uma exposição de seus quadros para vendê-los e, com o dinheiro obtido, comprar telas e tintas. A exposição foi feita, mas só se venderam seis quadros: cinco deles comprados por Mário. Emygdio mudou-se para a casa de seus parentes, no interior do Estado do Rio. Poucos meses depois, Almir foi até lá e trouxe para o museu uma série de belíssimos guaches, que Emygdio pintara. No ano seguinte, porém, Almir transferia-se para a Alemanha e nada mais se soube de Emygdio, até que o próprio Mário foi visitá-lo e constatou que o dinheiro destinado a comprar mais telas e tintas fora investido na aquisição de porcos e galinhas.
Muitos anos se passaram até que, certa tarde, Emygdio reapareceu, no Centro Psiquiátrico Nacional, de maleta e guarda-chuva, e informou a dra. Nise que queria reinternar-se para voltar a pintar.
E ali ficou, pintando, até completar 80 anos, quando, por lei, teve que deixar o hospital. A dra. Nise conseguiu interná-lo num asilo de velhos, onde concluiu sua existência vivida fora da História. É certo, porém, que, graças a ele, há hoje no universo, além de planetas e galáxias, alguns quadros e guaches de espantosa beleza.


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