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FERREIRA GULLAR
Fora da História
A obra de Emygdio tem uma carga psíquica que só quem viveu outros "estados do ser" revela
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HÁ 60 ANOS , em setembro de
1946, Nise da Silveira criava,
no Centro Psiquiátrico Nacional, no Rio, o ateliê de pintura
que daria origem ao Museu de Imagens do Inconsciente, hoje uma referência fundamental para os que
estudam as relações da arte com a
esquizofrenia.
O museu foi concebido com o propósito de preservar obras que, realizadas por doentes mentais, constituíssem material de estudo do seu
mundo interior, de difícil acesso e
compreensão. Não era intenção de
Nise formar ali artistas mas, sim,
lançar mão da linguagem simbólica
da arte para ampliar as possibilidades de superação da enfermidade
psíquica. Não obstante, desde o primeiro momento, os trabalhos de alguns dos pacientes despertaram o
interesse do crítico francês Léon
Degand, então diretor do MAM de
São Paulo, que propôs expô-los. Essa mostra provocou uma polêmica
entre os críticos Mário Pedrosa
-que defendia o valor artístico das
obras- e Quirino Campofiorito
-que o negava. Na verdade, um debate que continuaria ainda por muitos anos, dividindo a opinião de artistas e críticos.
Mas não vale a pena, agora, reabrir
essa discussão, mesmo porque o que
hoje muitas vezes se apresenta como arte não cabe em nenhuma definição possível. A estranheza, que levava alguns críticos a negar valor artístico àquelas obras, parece coisa
normalíssima em face das manifestações atuais. Tampouco quero perder meu tempo com isso.
Não demorou muito para que o
ateliê de pintura da dra. Nise revelasse talentos surpreendentes como
os de Emygdio, Rafael e Diniz. Era
de fato um outro universo que se revelava em suas pinturas e desenhos.
Vendo-os, convenci-me de que, se a
condição de esquizofrênicos imprimia a suas obras uma atmosfera peculiar, inusitada, não era ela que os
qualificava como artistas. Noutras
palavras, entendi que um artista pode ser esquizofrênico mas nem todo
esquizofrênico será artista e, dentro
dessa mesma visão, há esquizofrênicos que são bons artistas e outros
que são geniais, como é o caso de
Emygdio de Barros. Essa é uma afirmação difícil de demonstrar, mas
não sei de que outro modo qualificar
a força expressiva daquele universo
de formas ao mesmo tempo familiares e estranhas, transfiguradas na
sua expressão visionária. As cores,
que surgem como relâmpagos do
fundo da noite -noite psíquica?-,
pertencem a uma outra dimensão
do imaginário. Há, em seus quadros,
uma carga psíquica de tal densidade
que certamente só quem, como ele,
visitou outros "estados do ser" pode
revelar.
Emygdio, que estava internado há
25 anos sem falar uma só palavra, foi
trabalhar no ateliê de encadernação.
Um dia, porém, Almir Mavignier,
que monitorava o atelier de pintura,
encontrou sobre sua mesa um desenho que o deixou impressionado.
Descobriu que o autor era o paciente
magrinho chamado Emydgio e o
trouxe para o ateliê de pintura. Dos
desenhos, Emygdio passou aos quadros, ricos de matéria e variações
cromáticas, dando início a uma produção espantosa. Havia uma fosforescência subjacente à matéria cromática de seus quadros que ninguém sabia explicar.
Um dia, próximo ao Natal, Nise
perguntou a Emygdio que presente
gostaria de ganhar e ele respondeu:
"Um guarda-chuva". Ela concluiu
que ele desejava ir embora. "Mas ele
vai parar de pintar", advertiu Almir.
Decidiram, então, fazer uma exposição de seus quadros para vendê-los
e, com o dinheiro obtido, comprar
telas e tintas. A exposição foi feita,
mas só se venderam seis quadros:
cinco deles comprados por Mário.
Emygdio mudou-se para a casa de
seus parentes, no interior do Estado
do Rio. Poucos meses depois, Almir
foi até lá e trouxe para o museu uma
série de belíssimos guaches, que
Emygdio pintara. No ano seguinte,
porém, Almir transferia-se para a
Alemanha e nada mais se soube de
Emygdio, até que o próprio Mário
foi visitá-lo e constatou que o dinheiro destinado a comprar mais telas e tintas fora investido na aquisição de porcos e galinhas.
Muitos anos se passaram até que,
certa tarde, Emygdio reapareceu, no
Centro Psiquiátrico Nacional, de
maleta e guarda-chuva, e informou a
dra. Nise que queria reinternar-se
para voltar a pintar.
E ali ficou, pintando, até completar 80 anos, quando, por lei, teve que
deixar o hospital. A dra. Nise conseguiu interná-lo num asilo de velhos,
onde concluiu sua existência vivida
fora da História. É certo, porém,
que, graças a ele, há hoje no universo, além de planetas e galáxias, alguns quadros e guaches de espantosa beleza.
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