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GASTRONOMIA
Come-se sushi nos confins do beleléu
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
O hotel é de Primeiro Mundo numa cidade do interior
no Norte do Brasil. Tem muitos
andares e, da janela envidraçada,
vejo uma planície árida, muitas
casas novas e feias, gente de bicicleta e mulheres vestidas de saia
bem curta e justa, bustiê, umbigo
de fora e sandália de salto plataforma. Parece que saíram da televisão e são todas virtuais, impressão reforçada pelo vidro que me
separa da rua e do calor lá de fora.
Para descobrir as peculiaridades da terra, é preciso saber abrir
o coco e a castanha, os segredos
da comida são mantidos a sete
chaves, a regionalização gastronômica ainda não entrou na moda por estas bandas, aliás, em
banda nenhuma aqui no Brasil.
Nos confins do beleléu, vai-se ao
restaurante para comer picanha
fatiada e sushi.
O pequi, o maxixe diferente, a
manga-boceta, o mingau de milho são intimidades e não devem
ser partilhados com quem vem de
fora. Ir ao mercado é coisa que o
turista só consegue à força, que
loucura, é sujo, vamos ao supermercado, que tem de tudo. Salaminho italiano, alcaparras, tremoços, gorgonzola. Que idéia a
dessa mulher de querer comer
caldeirada e beldroega. Coisa de
pobre!
Há exceções. A camareira miúda, magrinha, idade indefinível de
moça, bate na porta e entra.
"- Conheço a senhora. Foi no
programa da Ana Maria Braga experimentar comidas, não foi? Eu
assisti."
Nem me intrigo mais.
Sabia que a apresentadora era
muito popular, mas, depois de ter
ido ao programa só três vezes,
num papelzinho para lá de secundário e mudo, não esperava ser
reconhecida, meses depois, em
Cunha, num precipício depois de
uma pinguela, no hospital Albert
Einstein, em São Paulo, em Imperatriz, Maranhão, em Montes Claros, Minas, na farmácia do shopping, na loja de cosméticos e, com
certeza, em Petrolina e no cinema
da Chapada.
Imagino homens e mulheres de
memórias prodigiosas sentados
em frente à televisão, absorvendo
e mastigando cada palavra e cada
gesto da Ana Maria e incorporando o papagaio José, os doces, os
salgados e os convidados.
A menina arrumadeira continua:
"- Ontem, quando vim arrumar
o quarto, dei uma lida neste livro.
Foi a senhora que escreveu, eu vi.
Adoro cozinhar." A voz cobiçava
um pouco. "- Queria ser cozinheira, mas não prestei concurso e sobrei."
Sentei numa das camas para dedicar o livro à moça. "- Eliza, nome bonito. Então o que é que se
faz de gostoso nesta terra?" Quase
não me deixou terminar a frase e
jogou-se na outra cama, de bruços, os dois pés cruzados, para cima, segurando o queixo com as
mãos.
"- Ah, o dinheiro é pouco, não
dá para variar muito e fazer grandes coisas, não. Ali no quarto do
lado, o Carlos, o moço amigo da
senhora, tá com uma sacolinha de
plástico cheia de vinagreira, aquela planta, sabe o quê?, que tem
uma flor vermelha. E outra de
joão-gomes, o matinho. É bom,
faço esparregado, assim, bato
bem batidinho, tempero com sal,
cebola e alho e passo na panela.
Bom de comer com ovo, com pão,
com tudo."
"E, quando tem galinha, se faz
arroz de galinha e, quando tem
pequi, arroz de pequi, mas o arroz
daqui mesmo é o de cuxá, o arroz
com vinagreira, com a folha. A senhora conhece?"
Não me deixou responder, já
pulou da cama, pegou o livro, encantada, e foi mexer na mala.
"- A roupa tá amassando pendurada neste cabide. Vou estender na cama e depois arrumo no
armário, mas primeiro tenho que
ir avisar que estou aqui. Volto jazinho, tá?"
Foi e voltou num pé só. Jazinho,
mesmo. Como que trocando gentilezas respondeu com naturalidade minhas perguntas sobre a
caldeirada, o babaçu.
Deu receita do arroz de cuxá,
mas receita simples, sem camarão, e, quando lhe faltava a expressão certa do modo de cozinhar, ou esquecia um nome importante naquela transmissão de
conhecimento oral, batia várias
vezes seguidas na testa, com os
dedos em nó e revirava os olhos,
buscando as idéias.
Aprendi expressões. "Morrer"
seria "dar adeus ao jerimum",
"não comer mais pirão". Cantou
uma cantiga pequena, se interessou vagamente por São Paulo,
não ia tirar o pé de lá da terra, não
porque gostasse muito, é que o
aluguel era barato, 80 reais, em
São Paulo só ia se tivesse onde
morar, porque viver só para pagar
aluguel era uma aporrinhação
sem feitio.
Finalmente, depois de toda a
ajuda possível, resolveu que era
hora de ir embora. Tinha me ajudado, sim, mas no fundo estava
honrando era a Ana Maria Braga,
que me acolhera no seu programa. Voltaria no dia seguinte para
fechar as malas, prometeu.
Fui me arrumar depressa para
jantar um filé Wellington com fritas, à beira do Tocantins, esperando o dia e a hora em que o Brasil se
convença a servir pelo menos um
pouco de suas raízes à mesa, sem
preconceitos. O que há de errado
com arroz com feijão, farinha de
mandioca, carne-seca, mangas
douradas, banana-da-terra? Intuo
que a responsabilidade maior está
com Ana Maria e seu papagaio José. Que Deus os ajude.
E-mail: ninahort@uol.com.br
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