São Paulo, quinta-feira, 22 de novembro de 2001

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GASTRONOMIA

Come-se sushi nos confins do beleléu

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

O hotel é de Primeiro Mundo numa cidade do interior no Norte do Brasil. Tem muitos andares e, da janela envidraçada, vejo uma planície árida, muitas casas novas e feias, gente de bicicleta e mulheres vestidas de saia bem curta e justa, bustiê, umbigo de fora e sandália de salto plataforma. Parece que saíram da televisão e são todas virtuais, impressão reforçada pelo vidro que me separa da rua e do calor lá de fora.
Para descobrir as peculiaridades da terra, é preciso saber abrir o coco e a castanha, os segredos da comida são mantidos a sete chaves, a regionalização gastronômica ainda não entrou na moda por estas bandas, aliás, em banda nenhuma aqui no Brasil. Nos confins do beleléu, vai-se ao restaurante para comer picanha fatiada e sushi.
O pequi, o maxixe diferente, a manga-boceta, o mingau de milho são intimidades e não devem ser partilhados com quem vem de fora. Ir ao mercado é coisa que o turista só consegue à força, que loucura, é sujo, vamos ao supermercado, que tem de tudo. Salaminho italiano, alcaparras, tremoços, gorgonzola. Que idéia a dessa mulher de querer comer caldeirada e beldroega. Coisa de pobre!
Há exceções. A camareira miúda, magrinha, idade indefinível de moça, bate na porta e entra.
"- Conheço a senhora. Foi no programa da Ana Maria Braga experimentar comidas, não foi? Eu assisti."
Nem me intrigo mais.
Sabia que a apresentadora era muito popular, mas, depois de ter ido ao programa só três vezes, num papelzinho para lá de secundário e mudo, não esperava ser reconhecida, meses depois, em Cunha, num precipício depois de uma pinguela, no hospital Albert Einstein, em São Paulo, em Imperatriz, Maranhão, em Montes Claros, Minas, na farmácia do shopping, na loja de cosméticos e, com certeza, em Petrolina e no cinema da Chapada.
Imagino homens e mulheres de memórias prodigiosas sentados em frente à televisão, absorvendo e mastigando cada palavra e cada gesto da Ana Maria e incorporando o papagaio José, os doces, os salgados e os convidados.
A menina arrumadeira continua:
"- Ontem, quando vim arrumar o quarto, dei uma lida neste livro. Foi a senhora que escreveu, eu vi. Adoro cozinhar." A voz cobiçava um pouco. "- Queria ser cozinheira, mas não prestei concurso e sobrei."
Sentei numa das camas para dedicar o livro à moça. "- Eliza, nome bonito. Então o que é que se faz de gostoso nesta terra?" Quase não me deixou terminar a frase e jogou-se na outra cama, de bruços, os dois pés cruzados, para cima, segurando o queixo com as mãos.
"- Ah, o dinheiro é pouco, não dá para variar muito e fazer grandes coisas, não. Ali no quarto do lado, o Carlos, o moço amigo da senhora, tá com uma sacolinha de plástico cheia de vinagreira, aquela planta, sabe o quê?, que tem uma flor vermelha. E outra de joão-gomes, o matinho. É bom, faço esparregado, assim, bato bem batidinho, tempero com sal, cebola e alho e passo na panela. Bom de comer com ovo, com pão, com tudo."
"E, quando tem galinha, se faz arroz de galinha e, quando tem pequi, arroz de pequi, mas o arroz daqui mesmo é o de cuxá, o arroz com vinagreira, com a folha. A senhora conhece?"
Não me deixou responder, já pulou da cama, pegou o livro, encantada, e foi mexer na mala.
"- A roupa tá amassando pendurada neste cabide. Vou estender na cama e depois arrumo no armário, mas primeiro tenho que ir avisar que estou aqui. Volto jazinho, tá?"
Foi e voltou num pé só. Jazinho, mesmo. Como que trocando gentilezas respondeu com naturalidade minhas perguntas sobre a caldeirada, o babaçu.
Deu receita do arroz de cuxá, mas receita simples, sem camarão, e, quando lhe faltava a expressão certa do modo de cozinhar, ou esquecia um nome importante naquela transmissão de conhecimento oral, batia várias vezes seguidas na testa, com os dedos em nó e revirava os olhos, buscando as idéias.
Aprendi expressões. "Morrer" seria "dar adeus ao jerimum", "não comer mais pirão". Cantou uma cantiga pequena, se interessou vagamente por São Paulo, não ia tirar o pé de lá da terra, não porque gostasse muito, é que o aluguel era barato, 80 reais, em São Paulo só ia se tivesse onde morar, porque viver só para pagar aluguel era uma aporrinhação sem feitio.
Finalmente, depois de toda a ajuda possível, resolveu que era hora de ir embora. Tinha me ajudado, sim, mas no fundo estava honrando era a Ana Maria Braga, que me acolhera no seu programa. Voltaria no dia seguinte para fechar as malas, prometeu.
Fui me arrumar depressa para jantar um filé Wellington com fritas, à beira do Tocantins, esperando o dia e a hora em que o Brasil se convença a servir pelo menos um pouco de suas raízes à mesa, sem preconceitos. O que há de errado com arroz com feijão, farinha de mandioca, carne-seca, mangas douradas, banana-da-terra? Intuo que a responsabilidade maior está com Ana Maria e seu papagaio José. Que Deus os ajude.
E-mail: ninahort@uol.com.br



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