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NELSON ASCHER
Mengele e eu
Quem discorde visceralmente
de alguns de meus pontos de
vista (se é que existe alguém assim) tem boas razões para maldizer a memória do finado dr. Josef
Mengele. Acontece que devo a ele
minha existência. Sério.
Não, ele não foi o obstetra da família nem, exercitando, sob um
pseudônimo qualquer, sua profissão aqui na terrinha, extraiu minhas amígdalas inflamadas. A
história é mais antiga. E longa.
Tudo começou quando a nobreza da Hungria, após o fracasso de
sua tentativa de se desligar, em
1848-49, da coroa austríaca, optou
por uma estratégia diferente e, incentivando o desenvolvimento
econômico e social da nação,
transformou-a, de súdita, em sócia minoritária da Monarquia
Dual. Aos habitantes das cidades
caberia se converterem numa nova classe média empresarial e profissional. Como muitos daqueles,
porém, eram germanófonos e leais
aos Habsburgos, o papel ficou para os judeus, com a condição de
que se "magiarizassem", isto é,
que adotassem a língua, a cultura
e mesmo nomes húngaros. Os judeus modernizariam o país e os
aristocratas o dirigiriam.
Esse contrato social tácito funcionou adequadamente até a Primeira Guerra Mundial, e o meio
século que a precedeu é rememorado como a "era de ouro" de sua
comunidade judaica. A derrota
militar, selada em 1920 pelo Tratado de Trianon que concedera
dois terços do território histórico
da Hungria e metade de sua população aos vizinhos, deixou atrás
de si uma terra arrasada e devidamente adubada para que nela florescessem as piores patologias sociais. A principal era o anti-semitismo.
Enquanto os judeus, profundamente patrióticos, esperavam que
o país saísse da zona de turbulência, a Hungria, tão logo os nazistas conquistaram o poder na Alemanha, aliou-se a estes que, como
ela, reivindicavam a revisão dos
tratados draconianos impostos
pelos vitoriosos de 1918. Paradoxalmente, a aliança entre ambas
as nações beneficiou, de início, os
judeus húngaros, pois os nazistas,
em vez de intervirem diretamente,
confiaram aos compatriotas deles
a solução do "problema". Apesar
de atingida econômica e legalmente, a comunidade judaica de
lá sobreviveu quase intacta (para
os padrões da época) até 1944, ano
em que, por exemplo, a da Polônia
já havia sido liquidada.
Para o regente Nicolau Horthy,
seus conterrâneos da "fé mosaica"
se dividiam entre os toleráveis
-os judeus assimilados da capital- e os totalmente ruins- os
das províncias. (Havia, aliás, os
muito piores: os que, habitando
regiões que Hitler obrigara eslovacos, romenos e sérvios a devolverem à Hungria, foram massacrados antes ou entregues aos nazistas.) A proteção parcial e relutante
que o governo lhes dava cessou assim que o regente tentou desastradamente conseguir um armistício
com os russos e anglo-americanos.
Os alemães ocuparam a Hungria
em março de 44, mês no qual
Adolf Eichmann se instalou em
Budapeste com o intuito de realizar sua obra-prima: a deportação,
em maio e julho, de mais de 400
mil judeus, sobretudo os das províncias, para Auschwitz.
Minha mãe e avó materna, que
viviam em Sátoraljaújhely (quem
não fala o idioma nem tente pronunciar o nome), cidade próxima
às fronteiras com a Eslováquia e a
Ucrânia sub-carpática, estavam
nessa leva. Meu avô, o primeiro-tenente Lászlo (Ladislau) Glanz,
combatente condecorado do conflito anterior, fora previamente
mandado a um campo de trabalhos forçados onde perecera como
mártir do tabagismo, pois, fumante de quatro maços diários, trocara sistematicamente suas rações
por cigarros.
Chegando, na Polônia, ao complexo concentracionário de
Auschwitz-Birkenau, ambas foram submetidas à seleção de praxe. Se os nazistas ideológicos queriam exterminar de imediato seus
hóspedes, os pragmáticos preferiam fazê-los trabalhar até a morte. Quem comandava pessoalmente o processo era o dr. Mengele. Ele separava os recém-chegados que recebiam um sabonete e
eram despachados para as salas
de banho daqueles enviados à
subsidiária local da I. G. Farben (o
conglomerado de indústrias químicas que reunia, entre outras,
Agfa, Basf, Bayer, Hoescht). Perguntada acerca da idade da filha,
minha avó, com a intenção de
protegê-la, respondeu que ela tinha 12" anos. Minha mãe, no entanto, beirava os 14 e era alta. O
doutor, ao que consta, olhou-a de
alto a baixo e, dizendo à minha
avó algo como "Sua cadela mentirosa, essa judiazinha suja está apta a trabalhar", adiou-lhe "sine
die" o encontro com as duchas.
Terá sido o próprio Mengele
que tomou a decisão? Impossível,
a 60 anos de distância, sabê-lo
com certeza. Não obstante as
duas terem me assegurado de que
era ele, só ouvi a história três décadas depois dos fatos e a memória humana é tão falaz quanto falível. Mais tarde, um médico do
campo, talvez o mesmo, salvou
um seio de minha mãe removendo-lhe, com bisturi, mas sem
anestesia, um furúnculo ou ferida
purulenta ocasionada pela infestação de piolhos. E, quando o
Exército Vermelho as resgatou,
em princípios de 45, nas cercanias
de Danzig/ Gdansk, foi um oficial
médico judeu que as atendeu, recomendando-lhes, em ídiche ou
alemão, que evitassem mencionar aos outros russos sua origem
étnica.
Reduzidas, cada qual, a menos
de 30 kg, mãe e filha passaram o
semestre convalescendo num hospital em Kiev antes de regressarem à terra natal para recuperarem suas propriedades, ou seja,
um latifúndio que, no Brasil, seria chamado de "chácara". Os vizinhos as receberam com as boas-vindas costumeiras das quais nenhum sobrevivente se esqueceu:
"Nossa, voltaram mais judeus do
que os que foram levados!"
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