São Paulo, segunda-feira, 22 de novembro de 2004

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NELSON ASCHER

Mengele e eu

Quem discorde visceralmente de alguns de meus pontos de vista (se é que existe alguém assim) tem boas razões para maldizer a memória do finado dr. Josef Mengele. Acontece que devo a ele minha existência. Sério.
Não, ele não foi o obstetra da família nem, exercitando, sob um pseudônimo qualquer, sua profissão aqui na terrinha, extraiu minhas amígdalas inflamadas. A história é mais antiga. E longa.
Tudo começou quando a nobreza da Hungria, após o fracasso de sua tentativa de se desligar, em 1848-49, da coroa austríaca, optou por uma estratégia diferente e, incentivando o desenvolvimento econômico e social da nação, transformou-a, de súdita, em sócia minoritária da Monarquia Dual. Aos habitantes das cidades caberia se converterem numa nova classe média empresarial e profissional. Como muitos daqueles, porém, eram germanófonos e leais aos Habsburgos, o papel ficou para os judeus, com a condição de que se "magiarizassem", isto é, que adotassem a língua, a cultura e mesmo nomes húngaros. Os judeus modernizariam o país e os aristocratas o dirigiriam.
Esse contrato social tácito funcionou adequadamente até a Primeira Guerra Mundial, e o meio século que a precedeu é rememorado como a "era de ouro" de sua comunidade judaica. A derrota militar, selada em 1920 pelo Tratado de Trianon que concedera dois terços do território histórico da Hungria e metade de sua população aos vizinhos, deixou atrás de si uma terra arrasada e devidamente adubada para que nela florescessem as piores patologias sociais. A principal era o anti-semitismo.
Enquanto os judeus, profundamente patrióticos, esperavam que o país saísse da zona de turbulência, a Hungria, tão logo os nazistas conquistaram o poder na Alemanha, aliou-se a estes que, como ela, reivindicavam a revisão dos tratados draconianos impostos pelos vitoriosos de 1918. Paradoxalmente, a aliança entre ambas as nações beneficiou, de início, os judeus húngaros, pois os nazistas, em vez de intervirem diretamente, confiaram aos compatriotas deles a solução do "problema". Apesar de atingida econômica e legalmente, a comunidade judaica de lá sobreviveu quase intacta (para os padrões da época) até 1944, ano em que, por exemplo, a da Polônia já havia sido liquidada.
Para o regente Nicolau Horthy, seus conterrâneos da "fé mosaica" se dividiam entre os toleráveis -os judeus assimilados da capital- e os totalmente ruins- os das províncias. (Havia, aliás, os muito piores: os que, habitando regiões que Hitler obrigara eslovacos, romenos e sérvios a devolverem à Hungria, foram massacrados antes ou entregues aos nazistas.) A proteção parcial e relutante que o governo lhes dava cessou assim que o regente tentou desastradamente conseguir um armistício com os russos e anglo-americanos. Os alemães ocuparam a Hungria em março de 44, mês no qual Adolf Eichmann se instalou em Budapeste com o intuito de realizar sua obra-prima: a deportação, em maio e julho, de mais de 400 mil judeus, sobretudo os das províncias, para Auschwitz.
Minha mãe e avó materna, que viviam em Sátoraljaújhely (quem não fala o idioma nem tente pronunciar o nome), cidade próxima às fronteiras com a Eslováquia e a Ucrânia sub-carpática, estavam nessa leva. Meu avô, o primeiro-tenente Lászlo (Ladislau) Glanz, combatente condecorado do conflito anterior, fora previamente mandado a um campo de trabalhos forçados onde perecera como mártir do tabagismo, pois, fumante de quatro maços diários, trocara sistematicamente suas rações por cigarros.
Chegando, na Polônia, ao complexo concentracionário de Auschwitz-Birkenau, ambas foram submetidas à seleção de praxe. Se os nazistas ideológicos queriam exterminar de imediato seus hóspedes, os pragmáticos preferiam fazê-los trabalhar até a morte. Quem comandava pessoalmente o processo era o dr. Mengele. Ele separava os recém-chegados que recebiam um sabonete e eram despachados para as salas de banho daqueles enviados à subsidiária local da I. G. Farben (o conglomerado de indústrias químicas que reunia, entre outras, Agfa, Basf, Bayer, Hoescht). Perguntada acerca da idade da filha, minha avó, com a intenção de protegê-la, respondeu que ela tinha 12" anos. Minha mãe, no entanto, beirava os 14 e era alta. O doutor, ao que consta, olhou-a de alto a baixo e, dizendo à minha avó algo como "Sua cadela mentirosa, essa judiazinha suja está apta a trabalhar", adiou-lhe "sine die" o encontro com as duchas.
Terá sido o próprio Mengele que tomou a decisão? Impossível, a 60 anos de distância, sabê-lo com certeza. Não obstante as duas terem me assegurado de que era ele, só ouvi a história três décadas depois dos fatos e a memória humana é tão falaz quanto falível. Mais tarde, um médico do campo, talvez o mesmo, salvou um seio de minha mãe removendo-lhe, com bisturi, mas sem anestesia, um furúnculo ou ferida purulenta ocasionada pela infestação de piolhos. E, quando o Exército Vermelho as resgatou, em princípios de 45, nas cercanias de Danzig/ Gdansk, foi um oficial médico judeu que as atendeu, recomendando-lhes, em ídiche ou alemão, que evitassem mencionar aos outros russos sua origem étnica.
Reduzidas, cada qual, a menos de 30 kg, mãe e filha passaram o semestre convalescendo num hospital em Kiev antes de regressarem à terra natal para recuperarem suas propriedades, ou seja, um latifúndio que, no Brasil, seria chamado de "chácara". Os vizinhos as receberam com as boas-vindas costumeiras das quais nenhum sobrevivente se esqueceu: "Nossa, voltaram mais judeus do que os que foram levados!"


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