São Paulo, quarta-feira, 22 de novembro de 2006

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

O pêndulo russo

Sempre que há uma promessa de liberdade, o pêndulo se desloca para o outro lado e arrasa com qualquer ilusão

NÃO É um espetáculo bonito de se ver. Falo de Alexander Litvinenko, ex-KGB no exílio, envenenado em Londres quando tomava chá num restaurante de sushi. Eu sempre disse que sushi não era saudável, mas temo que o caso seja mais grave: Litvinenko, alegadamente, investigava a morte da jornalista Anna Politkovskaya, uma especialista nas brutalidades que o Kremlin pratica na Chechênia, assassinada em outubro. Por quem? Ninguém sabe. Muitos desconfiam.
Litvinenko está internado entre a vida e a morte, e a foto, publicada na imprensa britânica, lembra alguém que não só bebeu veneno como foi passar férias em Chernobyl: um espectro calvo e cadavérico que nos olha do outro lado da eternidade.
Contemplo a imagem e lembro o discurso de Nikita Khrushchev há 50 anos. Em 1956, Khrushchev resolvia criticar Stálin, morto três anos antes, no 20º Congresso do PC Soviético. O discurso, que permaneceu secreto na URSS até 1989, durou quatro horas. E, durante quatro horas, houve espaço para tudo: silêncio, choro, desmaios. No final, os delegados voltaram para casa, alguns entraram em depressão, pelo menos dois optaram sensatamente pelo suicídio. O caso mais pícaro aconteceu com Boleslaw Bierut, líder polonês, que morreu de enfarto ao ler as palavras de Nikita semanas depois.
Especialistas asseguram que Khrushchev era um cínico profissional, capaz de denunciar o terror stalinista sem se incluir nele. E, além disso, procurava essencialmente legitimar-se no interior do PC, sobretudo perante concorrentes sérios, como Molotov. Não nego. Mas também não nego que, ao reduzir Stálin ao criminoso que de fato era, o discurso conseguiu o impensável: um relaxamento na paranóia soviética e uns ventos de abertura.
Lembro tudo isso porque, hoje, 50 anos depois, aos olhos da maioria dos russos, talvez seja Khrushchev o vilão do filme. Stálin é lembrado com saudade e, apesar dos 20 milhões de mortos, a URSS, dizem, era um país industrializado, vitorioso na 2ª Guerra, cientificamente avançado e, acima de tudo, respeitado.
Isso tem explicação? Talvez, se tivermos em conta a natureza pendular da história russa: como explicava recentemente o historiador Donald Rayfield na "Literary Review", sempre que há uma promessa de liberdade, o pêndulo se desloca para o outro lado e arrasa com qualquer ilusão. Em 1861, a emancipação dos servos prometia uma nova era que, na verdade, a violência czarista não confirmou. Em 1905, a proclamação da constituição anunciava ao mundo que a Rússia seguia o caminho das democracias liberais; Lênin chegaria a seguir. Khrushchev seria enterrado por Brezhnev. E aqueles que acreditaram no "fim da história" com a implosão de 1991 se enganaram: Putin não só prende opositores (como Khodorkovsky, hoje na Sibéria) como é suspeito de assassinatos políticos (Politkovskaya) ou de tentativas de (os envenenados Viktor Yushchenko, presidente da Ucrânia, e Litvinenko). E as garras do Kremlin vão apertando internamente.
Na Rússia, a ilusão democrática durou uma década. Elementar, meu caro Watson. O pêndulo não perdoa.


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