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JOÃO PEREIRA COUTINHO
O pêndulo russo
Sempre que há uma promessa de liberdade, o pêndulo se desloca para o outro lado e arrasa com qualquer ilusão
NÃO É um espetáculo bonito
de se ver. Falo de Alexander
Litvinenko, ex-KGB no exílio, envenenado em Londres quando tomava chá num restaurante de
sushi. Eu sempre disse que sushi
não era saudável, mas temo que o caso seja mais grave: Litvinenko, alegadamente, investigava a morte da
jornalista Anna Politkovskaya, uma
especialista nas brutalidades que o
Kremlin pratica na Chechênia, assassinada em outubro. Por quem?
Ninguém sabe. Muitos desconfiam.
Litvinenko está internado entre a
vida e a morte, e a foto, publicada na
imprensa britânica, lembra alguém
que não só bebeu veneno como foi
passar férias em Chernobyl: um espectro calvo e cadavérico que nos
olha do outro lado da eternidade.
Contemplo a imagem e lembro o
discurso de Nikita Khrushchev há
50 anos. Em 1956, Khrushchev resolvia criticar Stálin, morto três
anos antes, no 20º Congresso do PC
Soviético. O discurso, que permaneceu secreto na URSS até 1989, durou
quatro horas. E, durante quatro horas, houve espaço para tudo: silêncio, choro, desmaios. No final, os delegados voltaram para casa, alguns
entraram em depressão, pelo menos
dois optaram sensatamente pelo
suicídio. O caso mais pícaro aconteceu com Boleslaw Bierut, líder polonês, que morreu de enfarto ao ler as
palavras de Nikita semanas depois.
Especialistas asseguram que
Khrushchev era um cínico profissional, capaz de denunciar o terror
stalinista sem se incluir nele. E, além
disso, procurava essencialmente legitimar-se no interior do PC, sobretudo perante concorrentes sérios,
como Molotov. Não nego. Mas também não nego que, ao reduzir Stálin
ao criminoso que de fato era, o discurso conseguiu o impensável: um
relaxamento na paranóia soviética e
uns ventos de abertura.
Lembro tudo isso porque, hoje, 50
anos depois, aos olhos da maioria
dos russos, talvez seja Khrushchev o
vilão do filme. Stálin é lembrado
com saudade e, apesar dos 20 milhões de mortos, a URSS, dizem, era
um país industrializado, vitorioso
na 2ª Guerra, cientificamente avançado e, acima de tudo, respeitado.
Isso tem explicação? Talvez, se tivermos em conta a natureza pendular da história russa: como explicava
recentemente o historiador Donald
Rayfield na "Literary Review", sempre que há uma promessa de liberdade, o pêndulo se desloca para o
outro lado e arrasa com qualquer
ilusão. Em 1861, a emancipação dos
servos prometia uma nova era que,
na verdade, a violência czarista não
confirmou. Em 1905, a proclamação
da constituição anunciava ao mundo que a Rússia seguia o caminho
das democracias liberais; Lênin chegaria a seguir. Khrushchev seria enterrado por Brezhnev. E aqueles que
acreditaram no "fim da história"
com a implosão de 1991 se enganaram: Putin não só prende opositores
(como Khodorkovsky, hoje na Sibéria) como é suspeito de assassinatos
políticos (Politkovskaya) ou de tentativas de (os envenenados Viktor
Yushchenko, presidente da Ucrânia,
e Litvinenko). E as garras do Kremlin vão apertando internamente.
Na Rússia, a ilusão democrática
durou uma década. Elementar, meu
caro Watson. O pêndulo não perdoa.
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