São Paulo, Quarta-feira, 22 de Dezembro de 1999


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ROBERT BRESSON (1901- 1999)
O cineasta que odiava o cinema

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Robert Bresson chamava sua arte de "cinematógrafo", para deixar bem claro tudo o que o separava do cinema.
Cinema para ele era o odiável reino do faz-de-conta, a imitação do teatro, o lugar em que o falso e o verdadeiro se misturavam (e dessa mistura resultava o falso, segundo ele).
Por isso mesmo, quando vemos um filme de Bresson, temos a impressão de entrar mesmo em um outro mundo. Seus filmes nunca têm música para reforçar a emoção. A única "música" que admitia eram os ruídos.
Raramente movimentos de câmera acompanham a ação (no fim da carreira chegou a recusar até mesmo a correção dos enquadramentos). Seus atores (chamava-os de modelos, seres que modelava, que inventava "tais como são") foram quase sempre amadores, para evitar o contágio do trabalho "técnico".
Que isso não se confunda com primado do amadorismo ou da falta de técnica. Seu rigor era famoso. Quando filmava "Le Diable Probablement", nos anos 70, rodou mais de 70 vezes o primeiro plano de uma porta se abrindo. Não se via nenhum personagem em cena. Mas Bresson exigia um determinado movimento, uma velocidade exata.
Não era diferente no trabalho com atores (ou "modelos"). Seu método exaustivo levou a imensa maioria dos jovens que trabalharam com ele a nunca mais visitar um "set" de filmagem, após fazer trabalhos memoráveis. Também não é de espantar que considerasse a dublagem barbárie pura e simples, que criava "vozes sem realidade, não conformes ao movimento dos lábios".

Fundamentalismo
Esse fundamentalismo cinematográfico que o condenou quase naturalmente à pouca popularidade está ligado ao fundamentalismo católico francês, herdeiro do jansenismo do século 17. Daí sua identidade com o romancista Georges Bernanos. Daí também o estilo seco, isento de efeitos, de qualquer tipo de enfeite.
Qual a obra-prima de Bresson? Pergunta difícil de responder. Nos anos 40, dirige "As Damas do Bois de Bologne" (1944-45), com Maria Casarès, talvez seu filme mais vistoso.
Nos anos 50, as preferências dividem-se entre "Um Condenado à Morte Escapou" (1956) e "Pickpocket" (1959). Nos 60, "O Processo de Joana d'Arc" (1962), "Au Hasard Balthazar" (1966) e "Mouchette, a Virgem Possuída" (1967) se destacam. Nos 70, "Lancelot du Lac" (1974) e "Le Diable Probablement" (1977). Por fim, nos 80, encerra a carreira magnificamente com "L'Argent" ("O Dinheiro").
Seus 13 longas-metragens compõem um bloco sólido que, se poucas vezes atingiu um público maior, fizeram de Bresson um dos cineastas mais influentes e mais respeitados da segunda metade do século 20.
Desdramatização e despojamento, pobreza de estilo arduamente construída, ascetismo e austeridade: não faltam palavras para definir o estilo inimitável de Robert Bresson.
Nenhuma delas, porém, consegue dar conta de sua aventura pessoal, que talvez tenha consistido em procurar a verdade dos sentidos por meio dos sentidos e descrever um mundo habitado por seres a quem Deus abandonou à própria sorte. Bresson foi, ao mesmo tempo, o cineasta do sublime e da fragilidade do homem.


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