São Paulo, segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

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Crítica/"Amor e Raiva"

Filme em episódios reflete espírito de 68

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

O ano era 1968. A ideia original de Carlo Lizzani era juntar alguns dos cineastas mais polêmicos e criativos da época para um filme de episódios inspirados em passagens bíblicas. O título seria "Evangelho 70".
Não foi bem isso o que resultou "Amor e Raiva", mas uma colcha de retalhos irregular que de todo modo reflete bastante o espírito daqueles tempos conturbados e as obsessões de cada um dos autores convidados.
O próprio Lizzani, veterano oriundo do neo-realismo, realizou em Nova York o segmento "A Indiferença", retratando várias situações de descaso e insensibilidade na metrópole, em especial o desespero de um homem que busca socorro para a mulher ferida gravemente num acidente de carro. Nos extras do DVD, Lizzani diz que tentou transpor aos tempos modernos a parábola do bom samaritano.
É um filme digno e que mantém até hoje o seu viço.
Dos outros episódios, o mais bem resolvido talvez seja o de Pier Paolo Pasolini, uma fábula sobre a inocência protagonizada por seu ator-fetiche Ninetto Davoli. No papel do desocupado Ricetto, Davoli percorre alegremente as ruas de uma grande cidade enquanto Deus, por meio de vozes, tenta chamar sua atenção para as desgraças do mundo, mostradas em flashes de impacto: guerras, fome, revoluções, tortura.
Jean-Luc Godard desenvolve em seu segmento a eterna equação cinema-amor-política.
Um casal formado por uma francesa e um italiano observa e comenta as relações de outro casal igualmente formado por uma francesa (Christine Guého) e um italiano (Nino Castelnuovo). Os observadores discutem cinema e vida; os observados, amor e política.

Conjunto heterogêneo
Se o episódio de Godard parece desdobrar naturalmente os temas e experimentos que ele vinha perseguindo em seu cinema, o de Bernardo Bertolucci é uma obra inteiramente à parte em sua filmografia. Trata-se da encenação estilizada e ao mesmo tempo visceral da agonia e morte de um homem (Julien Beck) pelo grupo Living Theatre.
O tom alegórico sugere que se esteja falando da morte do poder, ou da religião, ou do próprio Deus. Vale mais, hoje, como registro de como eram as performances catárticas do Living Theatre, que lembram um pouco o teatro radical de um Zé Celso, só que desprovido da festa dionisíaca.
Por fim, Marco Bellocchio encena com ares de esquete amador a tomada de uma sala de aula por universitários em greve. O próprio Bellocchio encarna, com uma cômica barba postiça, um professor reacionário nessa farsa sobre o radicalismo político comentada de modo um tanto prolixo e confuso pelo cineasta nos extras do DVD.
Esse conjunto heterogêneo, que alterna momentos brilhantes com outros tediosos, tem um valor inquestionável para a história do cinema, em especial para a discussão das espinhosas relações entre ética e estética.
Fruto de uma iniciativa generosa de Lizzani, buscou ampliar o escopo dos filmes de episódios então em voga (que se restringiam basicamente à comédia) e, ao mesmo tempo, dar voz às inquietações de uma nova geração de cineastas.
Baixo orçamento, grandes ideias, pluralidade de enfoques.
Ou seja, o contrário do que prevalece no cinema de hoje.


AMOR E RAIVA
Lançamento: Versátil
Quanto: R$ 39, em média
Classificação: não indicado a menores de 18 anos
Avaliação: bom



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