|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/"Amor e Raiva"
Filme em episódios reflete espírito de 68
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
O ano era 1968. A ideia
original de Carlo Lizzani era juntar alguns
dos cineastas mais polêmicos e
criativos da época para um filme de episódios inspirados em
passagens bíblicas. O título seria "Evangelho 70".
Não foi bem isso o que resultou "Amor e Raiva", mas uma
colcha de retalhos irregular que
de todo modo reflete bastante o
espírito daqueles tempos conturbados e as obsessões de cada
um dos autores convidados.
O próprio Lizzani, veterano
oriundo do neo-realismo, realizou em Nova York o segmento
"A Indiferença", retratando várias situações de descaso e insensibilidade na metrópole, em
especial o desespero de um homem que busca socorro para a
mulher ferida gravemente num
acidente de carro. Nos extras
do DVD, Lizzani diz que tentou
transpor aos tempos modernos
a parábola do bom samaritano.
É um filme digno e que mantém até hoje o seu viço.
Dos outros episódios, o mais
bem resolvido talvez seja o de
Pier Paolo Pasolini, uma fábula
sobre a inocência protagonizada por seu ator-fetiche Ninetto
Davoli. No papel do desocupado Ricetto, Davoli percorre alegremente as ruas de uma grande cidade enquanto Deus, por
meio de vozes, tenta chamar
sua atenção para as desgraças
do mundo, mostradas em flashes de impacto: guerras, fome,
revoluções, tortura.
Jean-Luc Godard desenvolve
em seu segmento a eterna
equação cinema-amor-política.
Um casal formado por uma
francesa e um italiano observa
e comenta as relações de outro
casal igualmente formado por
uma francesa (Christine Guého) e um italiano (Nino Castelnuovo). Os observadores discutem cinema e vida; os observados, amor e política.
Conjunto heterogêneo
Se o episódio de Godard parece desdobrar naturalmente
os temas e experimentos que
ele vinha perseguindo em seu
cinema, o de Bernardo Bertolucci é uma obra inteiramente à
parte em sua filmografia. Trata-se da encenação estilizada e
ao mesmo tempo visceral da
agonia e morte de um homem
(Julien Beck) pelo grupo Living
Theatre.
O tom alegórico sugere que
se esteja falando da morte do
poder, ou da religião, ou do próprio Deus. Vale mais, hoje, como registro de como eram as
performances catárticas do Living Theatre, que lembram um
pouco o teatro radical de um Zé
Celso, só que desprovido da festa dionisíaca.
Por fim, Marco Bellocchio
encena com ares de esquete
amador a tomada de uma sala
de aula por universitários em
greve. O próprio Bellocchio encarna, com uma cômica barba
postiça, um professor reacionário nessa farsa sobre o radicalismo político comentada de
modo um tanto prolixo e confuso pelo cineasta nos extras
do DVD.
Esse conjunto heterogêneo,
que alterna momentos brilhantes com outros tediosos, tem
um valor inquestionável para a
história do cinema, em especial
para a discussão das espinhosas
relações entre ética e estética.
Fruto de uma iniciativa generosa de Lizzani, buscou ampliar
o escopo dos filmes de episódios então em voga (que se restringiam basicamente à comédia) e, ao mesmo tempo, dar
voz às inquietações de uma nova geração de cineastas.
Baixo orçamento, grandes
ideias, pluralidade de enfoques.
Ou seja, o contrário do que prevalece no cinema de hoje.
AMOR E RAIVA
Lançamento: Versátil
Quanto: R$ 39, em média
Classificação: não indicado a menores de 18 anos
Avaliação: bom
Texto Anterior: Memória: Morre aos 82 a atriz Ida Gomes, uma das três irmãs Cajazeiras Próximo Texto: Carnaval tem peças e shows como opções Índice
|