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Crítica/ "O Que Eu Não Contei"
Obra alia intimidade com análise política
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Como os acontecimentos históricos do Irã são
somente o pano de fundo de "O Que Eu Não Contei",
de Azar Nafisi, e como é a família a protagonista, a tendência
mais imediata de uma leitura
crítica é perguntar-se: qual é o
interesse dos casos extraconjugais do pai da autora? Aos poucos, entretanto, essa impressão
dá lugar a uma compreensão
mais orgânica da relação entre
a intimidade da autora e as
transformações do Irã.
Azar Nafisi, professora de literatura nos Estados Unidos,
teve na ficção o seu "lar portátil", e mostra como as histórias
contribuíram para que ela sobrevivesse e criasse um mundo
paralelo, que, longe de aliená-la
da realidade, a fez conhecê-la
melhor.
Sua mãe, autoritária e moralista, lembrando o regime -secular ou religioso- inventava
histórias que mudavam conforme a necessidade. Seu pai, ex-prefeito de Teerã, lhe ensinou a
inventar narrativas para transformar o que lhe desagradava.
Assim, foi na ficção, e através
dela, que Azar sobreviveu ao regime do Xá e às sanções do regime religioso. Molestada aos
seis anos por um sacerdote, estudante na Inglaterra durante a
adolescência e ativista maoísta
em universidades americanas,
a autora passa por diversas fases das transformações iranianas: "A turbulência transitória
se tornou a única coisa permanente". Seu pai, um modernizador de Teerã e colaborador do
Xá, foi preso, traído e passou
três anos na cadeia.
Desde a revolta do clero contra o Xá, em 1963, com as proibições aos direitos das mulheres, já se prenunciava a revolução de 1979, liderada por Khomeini. A cultura era convenientemente cultivada ou proibida
e o cineasta Makhmalbaf, que
passou de extrema religiosidade a uma atitude mais moderada, dizia à autora: "Talvez a arte
possa nos dar a possibilidade de
viver várias vezes. Cada indivíduo só pode viver a partir de
uma única perspectiva. A arte
pode criar outras e diferentes
perspectivas".
Azar, que viu a diretora de
sua escola ser colocada dentro
de um saco, ser baleada e chamada de prostituta por defender os direitos femininos, que
manteve grupos de estudo sobre a poesia iraniana e ocidental, mesmo após ser proibida de
lecionar, agradece à República
Islâmica.
"Ao nos despojar dos prazeres da imaginação, do amor e da
cultura, ela nos dirigiu para
eles." Mesmo tendo perdido
tanto, a autora reconhece que
não há nada como ter algo a
perder. Mesmo com intimidades que talvez só interessem a
ela, ainda assim este livro nos
oferece infinitas histórias para
perder.
O QUE EU NÃO CONTEI
Autor: Azar Nafisi
Tradução: Mauro Pinheiro
Editora: Record
Quanto: R$ 54,90 (378 págs.)
Avaliação: bom
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