São Paulo, quinta-feira, 23 de março de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Apoteose cenográfica divide opiniões

Paulo Junqueira/Folha Imagem
Detalhes da construção da Igreja no edifício da Bienal, para alojar parte do módulo do barroco



Mostra dos 500 Anos terá ambientações em todos os módulos para cativar novo público para a arte


JULIANA MONACHESI
free-lance para a Folha


Ousadia ou banalização? A Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais está comprando uma briga dessas que vale a pena acompanhar: os 12 módulos da Mostra do Redescobrimento, a megaexposição de arte que vai ocupar o parque Ibirapuera a partir de 24 de abril, serão cenografados.
Especialistas dividem-se quanto à concepção expositiva adotada pelos organizadores, pois temem que a apoteose cenográfica roube a cena das obras de arte. Além disso, preocupam-se com o efeito sobre as instituições culturais, que podem perder público por não adotar esse "novo paradigma".
"Nada está sendo feito sem o consentimento do curador", diz Emilio Kalil, coordenador de cenografia da mostra. "A exposição continua com sentido museológico, ao qual se soma o trabalho cenográfico", diz Edemar Cid Ferreira, presidente da associação.
Os cuidados para preservar a integridade da obra de arte vão do casamento entre curadoria e cenografia à escolha dos nomes. Os responsáveis pela ambientação são nomes de peso: Bia Lessa, Daniela Thomas, Emanoel Araújo, Ezio Frigerio, Marcelo Ferraz, Marcos Flaksmann, Naum Alves de Souza, Paulo Mendes da Rocha e Paulo Pederneiras.
Todos eles já puseram mãos à obra nos espaços que lhes cabem, e os três pavilhões que vão abrigar a mostra estão atualmente tomados por operários. A intervenção mais radical já tem endereço: no edifício da Bienal está sendo construída a réplica de uma igreja.
A diretora e cenógrafa Bia Lessa, a quem coube o módulo "Arte Barroca", que tem curadoria de Myriam Ribeiro, decidiu "anular" a arquitetura de Oscar Niemeyer, ocupando todo o vão do edifício com essa "catedral".
O visitante vai entrar pelo térreo, onde serão instalados troncos de árvore de sete metros e um lago com minério de ferro, e percorrer um trajeto com flores de papel crepom até o templo.
"A entrada vai remeter à situação daquelas imagens perfeitamente esculpidas chegando a um cenário de brutalidade e abundância que era o Brasil. Toda a cenografia vai contribuir para ressaltar a tensão entre o sagrado do colonialismo e o catolicismo adaptado pelos brasileiros", explica Bia Lessa.
Conhecida pela direção de peças e filmes, Lessa diz que a idéia não é fazer cenografia de teatro. "Não vai ter nada "fake': os troncos de árvore e o minério de ferro são reais. As flores de papel crepom estão sendo feitas por presidiários do Pavilhão 7 do Carandiru, que é o pavilhão dos devotos, o que reforça a idéia de que a devoção brasileira é feita pelas mãos, como o chão de procissões."
Quanto ao perigo de banalização, Lessa chama a atenção para a multiplicidade do mundo, em que as artes se cruzam. "As coisas não podem ser mais classificadas ou compartimentalizadas; essa é a riqueza do nosso tempo: não poder mais catalogar o mundo."
O cenógrafo italiano Ezio Frigerio, convidado para ambientar o módulo "O Olhar Distante", criou um cenário grandioso, com árvores pintadas de azul, que remetem à primeira visão que os portugueses tiveram do Brasil. O céu, o mar e a opulência da natureza foram conjugados por Frigerio.
"Não queria fazer algo realista, então fiz uma união entre a forma da árvore e o azul do céu e do mar", conta. E acentua sua preocupação de não interferir nas obras, que vão de Frans Post a Anselm Kiefer: "Quando as pessoas olham para a pintura, estão de costas para as árvores."
O curador do MAM-Rio, Agnaldo Farias, afirma logo ser contra pré-julgamentos. Feita a ressalva, diz que sua preocupação é que o espetáculo termine encobrindo as obras. "Sem tirar a dimensão protagonista da obra de arte, o responsável pela ambientação pode propiciar atmosfera mais rica para fruição", completa.
Por outro lado, Farias considera haver uma mistificação acerca do espaço branco e neutro. "Esse é um mito de raiz modernista. O espaço limpo, puro, ideal, platônico e sepulcral do modernismo deu lugar à concorrência de fatores que faz parte de nosso cotidiano."
Tadeu Chiarelli, curador do MAM de São Paulo, faz menos concessões. "Zanini sempre ensinou algo que reputo fundamental: qualquer elemento que não seja a obra de arte deve apenas auxiliar a compreensão do público das artes. A cenografia banaliza ou tende a banalizar a arte."
Chiarelli enfatiza o risco de esse ideário tornar aos olhos do público museus e centros culturais espaços atrativos como os shopping centers. "O espectador não entra em um espaço expositivo para ver vitrines, para passar ao largo como um "flâneur". Desenhos do século 18 ou monotipias de Mira Schendel, por exemplo, necessitam de outro tempo, outra postura, e podem acabar sem público porque não têm showbiz", diz.
Farias concorda: "Acho imperdível a oportunidade de visitar tudo dessa tentativa estupenda de resumir nossa arte, mas pelo fato de nunca termos visto uma mostra dessa envergadura temo que a política espetacular distancie o público de exposições pequenas, de leitura em profundidade".
Martin Grossmann, vice-diretor do MAC-USP, é outro que alerta para o risco de a cenografia maquiar a potência da arte, mas a considera bem-vinda contra a visão mítica das obras. "O paradigma moderno preconiza uma certa ideologia do espaço da arte, que Lina Bo Bardi questionou com o projeto dos cavaletes para o Masp, por exemplo", diz.
Para ele, a cenografia é interessante como experiência. "É mais difícil trabalhar com isso do que com o purismo, por isso deve-se ter o cuidado de deixar muito claro que conceito está por trás."
Segundo Edemar Cid Ferreira, cenografar foi um consenso a que se chegou pensando em entusiasmar o público. "Um recinto acolhedor para o visitante possibilita conquistar pessoas que pela primeira vez estão indo a uma exposição de arte", afirma.
"Você não cativa com pirotecnia, e sim com um trabalho sistemático e sério que vá sedimentando o interesse pela arte. Não se amplia qualitativamente o público transformando exposições em circo", sentencia Chiarelli.


Texto Anterior: Programação de TV
Próximo Texto: "Críticos são estertores do velho Brasil", diz Aguilar
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.