São Paulo, sexta-feira, 23 de março de 2007

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Freak show

Heitor Dhalia fala da "estética da leveza" que buscou em "O Cheiro do Ralo", depois de pesar a mão em "Nina", seu primeiro longa, fracasso de público; diretor agora opta por pegada "pop" e a presença do carismático Selton Mello

EDUARDO SIMÕES
DA REPORTAGEM LOCAL

"O Cheiro do Ralo", que chega hoje com 17 cópias aos cinemas de São Paulo, Rio e Brasília, tornou-se um inesperado cartão de visita para seu diretor, o pernambucano Heitor Dhalia, 37. "O engraçado é que ele era patinho feio, foi muito rejeitado, até depois de pronto", conta Dhalia, que, de setembro para cá, com o filme a tiracolo, acumulou prêmios nacionais (Prêmio da Crítica Internacional e Prêmio Especial do Júri, do Festival do Rio, e o Prêmio do Júri da Mostra de Cinema em São Paulo), foi ao Festival Sundance e emplacou dois projetos na O2 Filmes.
Nada mal para um diretor cuja estréia na direção de longas, "Nina" (2004), foi mal nas bilheterias (o público não passou de 40 mil espectadores) e que quase desistiu de levar adiante sua adaptação para o cinema do livro homônimo do quadrinista Lourenço Mutarelli, sobre o dono de uma loja (Selton Mello) que compra objetos usados, às voltas com um malcheiroso ralo de banheiro, e um vazio que, pensa, só poderá preencher se comprar "a" bunda.
"Quando chegava no nome, as pessoas [produtores] diziam "Não vou botar nenhum centavo nesse filme". Foi uma ladainha passar pelo título. Quando conseguia, caía na bunda, na história de um cara apaixonado por uma bunda, que cheira o ralo", recorda Dhalia, que reputa o sucesso do filme ao "lado sórdido e ao prazer pelas obsessões e taras sexuais" que todos temos.

Guerrilha
O diretor, que assina o roteiro com Marçal Aquino, repetindo a dobradinha de "Nina", ouvia o conselho de um amigo para fazer o filme "mesmo que fosse uma guerrilha" e juntou-se a quatro sócios privados, que usaram dinheiro do próprio bolso para tirar o filme do papel. O orçamento?
"Comecei a falar em R$ 300 mil, sem ter orçado. Era um completo blefe e todo mundo pensava que era verdade", conta Dhalia. "Cada um entrou com cerca de R$ 50 mil, ainda tivemos mais um prejuízo. Depois conseguimos mais R$ 30 mil, mas tínhamos tanta paranóia do dinheiro acabar que economizamos R$ 15 mil. Mas não acho que fazer filme com 300 paus seja modelo."
Descontado o desafio de rodar o segundo filme com um orçamento inferior ao primeiro -"Nina" custou cerca de R$ 2,5 milhões-, Dhalia impôs-se uma condição subjetiva: não fazer de "O Cheiro" outro "Nina".
"Ali eu entendi que pesei a mão. Eu sei que o diálogo é difícil, muita gente não gosta, mas era meu primeiro filme, eu estava mais duro. Foi também um aprendizado sobre tom e o ato de comunicação. Fui intransigente, tive algo adolescente, de reafirmação do eu", explica Dhalia. "Eu tinha uma trajetória em publicidade e queria fazer um filme autoral e visceral, não concessivo. Consegui, mas saiu negro demais."
Mea-culpa feita, Dhalia diz não ter feito grandes mudanças na dramaturgia de Mutarelli, tomando um "partido irônico" em vez de um realismo cru, algo traduzido no que ele chama de "estética da leveza", presente no figurino dos personagens, na fotografia sem áreas de sombra, numa "paleta com todos os tons marrons", na direção de arte "trash" da loja e da lanchonete da Mooca, na trilha sonora com um "aspecto de colecionador", com música francesa e italiana dos anos 70, punk rock, Frank Sinatra etc.
"Optei por uma coisa meio pop como faz o Martin Scorsese, que numa cena de matança não sublinha ou enfatiza, mas busca um contraponto irônico. Tarantino também faz isso. É uma lição do cinema independente americano."
Dhalia também ressalta a participação de Selton Mello como "fator definidor" na feitura do filme, não só porque trabalhou de graça, mas porque ele queria um ator carismático. "E o Selton tem este perfil, é carismático. Veio da televisão, mas ao mesmo tempo se voltou contra isso, abandonou, só faz cinema há um tempão e aposta em coisas em que acredita."

Depois do "Cheiro"
Depois de "Nina" e "O Cheiro do Ralo", dois filmes "sobre jogos de poder, com personagens claustrofóbicos", Dhalia se prepara para rodar os projetos que o levaram à O2: "À Deriva", drama com tintas autobiográficas, "não tão negro como os outros". E um longa sobre a missão brasileira no Haiti. "O roteiro está entre "O Jardineiro Fiel", "Cidade de Deus" e "Batalha de Argel". Será o grande divisor de águas da minha carreira. E tudo isso veio impulsionado pelo "Cheiro"."


O CHEIRO DO RALO
Direção:
Heitor Dhalia
Com: Selton Mello, Paula Brown, Sílvia Lourenço, Lourenço Mutarelli
Quando: a partir de hoje no Bristol, Espaço Unibanco e circuito

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