São Paulo, terça-feira, 23 de março de 2010

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Nos tempos de Kurosawa

No dia do centenário do maior cineasta japonês, morto em 1998, Folha recolhe lembranças do famoso circuito de cinemas da Liberdade

Arquivo Folha
Fachada do Cine Niterói, que funcionou na av.Galvão Bueno entre 1953 e 1968, junto com restaurante, hotel e salão de festas

FERNANDA EZABELLA
REPORTAGEM LOCAL

A casa que lotava para ver o tilintar das espadas de samurai, nos filmes épicos de Akira Kurosawa, hoje só enche em dia de evento gospel. No bairro da Liberdade, em São Paulo, não há mais rastros da efervescência cinéfila da colônia japonesa, que por três décadas viu nascer e morrer quatro salas de cinema exclusivas para filmes japoneses: Cine Niterói, Cine Tokyo, Cine Nippon e Cine Jóia.
Na ocasião do centenário de Kurosawa (comemorado hoje), o mais importante cineasta japonês, morto em 1998 aos 88 anos, a reportagem foi atrás das memórias dos frequentadores desse circuito da Liberdade, que chegavam a dar volta no quarteirão em dia de lançamento, eles de terno e gravata, elas de vestido.
A sala mais antiga, o Cine Niterói, foi construída do zero, em 1953. Além dos dois andares de cinema, com 1.500 poltronas, havia um restaurante, um hotel e um salão de festas que chegou a receber exposições de Manabu Mabe (1924-1997).
"O cinema foi construído com muito feijão", lembra o japonês Susumu Tanaka, 96, sobre os carregamentos que fazia por fazendas do interior do Paraná, que ajudaram a pagar o empreendimento do irmão mais velho. "Deixávamos de jantar e ia todo mundo ao cinema", diz Tanaka, que deixou a cidade de Osaka aos 10 anos.
Com a chegada dos outros três cinemas, distribuidoras japonesas se instalaram na região e passaram a trazer astros para divulgar os filmes, como Toshiro Mifune, o predileto de Kurosawa, e Yuzo Kayama, uma espécie de Roberto Carlos oriental. As companhias também ganharam exclusividade nas salas: a Toho, por exemplo, que tinha obras de Kurosawa e Eizo Sugawa, se aliou ao Cine Tóquio e, mais tarde, ao Jóia.
"O Cine Jóia era todo esculhambado, sujo, os banheiros cheiravam mal", lembra o monge budista Ricardo Mario Gonçalves, 68, que na época era um badalado tradutor de legendas da Toho, incluindo diversos de Kurosawa, como "Viver" e "Trono Manchado de Sangue". "Já o Nippon era o mais jeitosinho, as meninas todas uniformizadas, como aeromoças."

O "menos" japonês
A fama de Kurosawa, que já naquela época era considerado um gênio, ganhador de diversos festivais e um Oscar por "Rashomon" (1950), fazia com que seus filmes fossem além da Liberdade, chegando também ao Ipiranga ou Odeon. Isso levou muitos cinéfilos que viviam no circuito japonês a tachar a obra de Kurosawa de "muito ocidentalizada" ou "carne de vaca".
"Rejeitar Kurosawa virou um sinal de distinção", conta o pesquisador Alexandre Kishimoto, autor de uma tese sobre os cinemas, apresentada neste mês na USP. "Os não-nikkei [não descendente de japonês] que passaram a frequentar as salas da Liberdade tiveram a oportunidade de conhecer muito mais do cinema japonês do que só os filmes de sucesso dos festivais." Foi assim que críticos e cineastas brasileiros, como Carlos Reichenbach, passaram a conhecer, antes mesmo dos europeus, japoneses como Ozu, Naruse e Gosho.


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