São Paulo, sábado, 23 de abril de 2005

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CONTOS/"NOTAS DE ARREBENTAÇÃO"

Mirisola volta a encarar seus demônios

SANTIAGO NAZARIAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

O horror de Marcelo Mirisola corre sob a pele, cresce entre os pêlos, se espalha como tecido adiposo. Podemos chamá-lo de encosto, obsessão ou simplesmente testosterona. Mas, em sua melhor expressão, assume o título nobre de literatura.
Em sua "Notas da Arrebentação", uma antologia de contos, novela, carta e peça de teatro, Mirisola enfrenta novamente seus demônios e dá um boa amostra do universo que lhe tornou célebre. Começa com "Carta para o Gombro", dirigida ao escritor Juliano Garcia Pessanha, e termina com a peça "Luto", um monólogo derramado. Ótimas escolhas de abertura e fechamento do livro, que funcionam também como um acerto de contas do autor com seus leitores, com sua obra e com seus "exus". Pois se a carta, por sua própria função, permite que o autor faça esse acerto dialogando com um colega, a peça é a reflexão de Mirisola perante o público. E, apesar das intenções intelectuais e do tom "cerebral" de seu discurso, são nesses dois momentos que Marcelo Mirisola se torna mais delicado e verdadeiro.
Os quatro contos e a novela apresentam o típico universo mirisolano, a zona nobre da prostituição paulistana, com suas transas intermináveis, mulheres marcadas de estrias e desencontros amorosos. Num tom próximo ao "beat", seus narradores se perdem em suas masculinidades à medida em que estão sempre se opondo à feminilidade das mulheres com quem cruzam. Assim, caracteriza-se o masculino por sua incapacidade, pelos pontos falhos de encaixe com o outro. E, como Jack Kerouac, o narrador de Mirisola é um maldito prestes a voltar aos braços da mãe.
O conjunto de contos foi chamado "Quatro Amores", já a novela se intitula "Um Crime". Poderíamos posicionar o ilícito e o afetivo de forma inversa, se considerarmos adultério como crime e casamento como amor. Mas, dentro da lógica mirisolana, a divisão estabelecida faz sentido.
Não podemos, no entanto, nos deixar assustar pelo falso horror do tema. Seus textos trazem o tempo todo pequenas pérolas, gracejos e citações que aliviam o peso e dão à obra a possibilidade de uma leitura pop. Adolescentes heterossexuais fãs de Beavis e Butthead podem descobrir o prazer de ler nas sacanagens de Mirisola. E isso é ótimo. Por mais que existam as referências à alta literatura, o livro está carregado de citações a Evandro Mesquita, Sandy & Junior e até ao boneco Brasilino: "Pra mim, tudo tem de ser literário. O Brasilino não é literário. Ou é?". Pode ser. Apesar do termo "literatura pop" ser quase paradoxal, visto que o pop é uma expressão que visa gerar identificação com a massa que deve estar lendo outro tipo de coisa, podemos atrelar o rótulo à obra no momento em que ela se utiliza de referenciais do grande público para fisgar o leitor e gerar um sorriso. Nesse momento, Mirisola mostra que tem total domínio de seus demônios e que é um escritor pop de primeira linha.


Santiago Nazarian, escritor, é autor de "A Morte Sem Nome" e "Feriado de Mim Mesmo" (ed. Planeta)

Notas da Arrebentação
   
Autor: Marcelo Mirisola
Editora: 34
Quanto: R$ 25 (128 págs.)


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