São Paulo, domingo, 23 de abril de 2006

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FERREIRA GULLAR

Gato fujão

Camilo , gato siamês de Darlene, vive com ela num apartamento aqui perto de onde moro. Darlene tem uma filha, que casou e mudou-se para a Tijuca. Camilo sentiu a falta dela, que ficava boa parte do dia em casa, fazendo-lhe companhia, já que sua dona trabalha na televisão e passa muito tempo fora. Por isso, Camilo ficava o dia todo de orelha em pé, atento ao menor ruído, na expectativa de que a porta se abrisse e Darlene entrasse de braços estendidos para pegá-lo no colo. Aí, então, sentia-se feliz e esquecia as horas de solidão que suportara.
Mas eis que, naquela quarta-feira, a faxineira, ao abrir a porta da cozinha, não percebeu que Camilo escapara para o corredor. Como havia terminado a faxina e já ia embora, trancou a porta, entrou no elevador e se foi, sem perceber que Camilo ficara do lado de fora, mais precisamente, no lance de escada que dá para o terceiro andar.
"E agora," -pensou Camilo- "como vou entrar em casa?" Naquele instante, ouviu vozes, rumor de gente que descia pela escada, e escafedeu-se: foi parar no andar térreo, no corredor que leva à entrada de serviço. Assustado, escondeu-se atrás de uns sacos de lixo que havia ali. Mas, logo depois, veio o faxineiro e pegou um dos sacos e o levou. Camilo, vendo a porta aberta, correu e saiu para a rua.
Esqueci de dizer que era Carnaval. Mal chegou à rua, surgiu um bloco barulhento, com bumbo e corneta, gente cantando e pulando. Tratou de afastar-se dali o mais depressa que pôde, dobrou a esquina, atravessou a rua e, como outro bloco se aproximava, subiu por um andaime que havia junto à marquise de um prédio. A barulheira dos carnavalescos aumentava, obrigando-o a passar para a marquise e meter-se por um buraco que encontrou.
Ficou ali um tempo, esperando o bloco afastar-se e o silêncio se restabelecer. "Quem inventou o Carnaval não pensou nos gatos", especulou Camilo lá com seus bigodes, mas logo esqueceu o Carnaval, porque o seu problema era como voltar para casa. Àquela altura, não tinha noção de onde se encontrava. E, vendo vir outro bloco acompanhado de carro de som com potentes alto-falantes, tratou de fugir dali, penetrando mais profundamente no buraco onde se metera, e descobriu que lá adiante havia certa claridade. Cauteloso, seguiu em frente e deparou com um espaço aberto que era, na verdade, um telhado muito grande, para onde davam as janelas de quatro edifícios. Continuava apreensivo, mas ali, pelo menos, havia silêncio e sossego. Relaxou e, depois de algum tempo, adormeceu.
Ao acordar, já anoitecera. Pensou em explorar a área, mas achou melhor voltar por onde viera e tentar encontrar o caminho de casa. Foi o que fez, mas, ao chegar ao buraco por onde entrara, encontrou-o fechado. "E agora?" Teve vontade de miar alto para ver se a Darlene o ouvia e vinha socorrê-lo, mas controlou-se, temendo atrair algum inimigo. Voltou para o telhado de onde viera, descobriu um vão de telha aberto e lá se escondeu. Ao acordar de madrugada, com fome e sede, não agüentou mais e começou a miar alto, a pedir socorro.
Despertei ouvindo aquele miado lancinante e tive a ilusória alegria de que meu gatinho, falecido havia poucos meses, ressuscitara! Mas logo a ilusão se desfez, não podia ser ele, era outro gato. Fui até a área de serviço, espiei pela tela de metal que a protege e o vi: era um gato siamês, parecido com meu Gatinho, que estava ali, miando desesperado. Pensei em ir a seu socorro, mas logo me dei conta de que não havia por onde passar. Voltei para a cama comovido, imaginando um modo de socorrê-lo ou, pelo menos, de lhe dar água e comida.
Os dias se passaram e, todas as noites, escutava seus gemidos, sem nada poder fazer. Finalmente, me lembrei de que havia comunicação entre a marquise e o telhado onde ele estava. Esperei o dia amanhecer, pus uma escada pela janela e desci até a marquise. Não havia passagem alguma.
No dia seguinte, vi dois homens buscando alguma coisa naquele telhado e pensei que estivessem atrás do gato. Se estavam, não o encontraram porque, ainda naquela noite, voltei a escutar-lhe os miados doídos.
Mas veja como é a vida. Um dos homens que procuravam naquele dia disse a alguém que havia ali um gato perdido.
-Deve ser o gato de dona Darlene!, falou alguém.
E foi contar a ela que, sem hesitar, faltou ao serviço na televisão e veio à procura do Camilo. Os dois homens, que tinham subido ao telhado para procurá-lo, não conseguiram achá-lo porque ele se enfiara naquele buraco das telhas que era seu esconderijo e ali ficara, quietinho e assustado. Mas, agora, quando ouviu a voz de Darlene, mudou de atitude; primeiro, deixou que ela o chamasse de novo; então, pôs a cabecinha fora do buraco para se certificar. Era ela mesmo que estava ali!
Soltou um miado diferente -como nem Darlene nem ninguém jamais ouvira- e correu para os braços dela que, com lágrimas nos olhos, o acarinhou e beijou.

 

Em tempo: na crônica "Morte do Opinião", por falta de espaço, deixei de dizer que João das Neves, ao assumir o teatro, salvou-o da morte e o manteve ativo e atuante durante 11 anos.


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