|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCELO COELHO
Um prédio novo aqui do lado
Aquela parede morta me dá tristeza; não vejo a hora de se acenderem as luzes de cada janela
COMECEI UM blog na Folha Online faz coisa de um ano e
meio. Não digo que seja um
sucesso de público.
Também, quem manda... Minhas
postagens são irregulares, e quase
nunca estou sintonizado nos assuntos de grande interesse. No caso da menina Isabella, fujo de palpites. Também aqui, quero escrever sobre algo menos deprimente.
Como todo blogueiro, tenho a curiosidade de saber quanta gente me
"acessa" na internet, e, por isso,
instalei um dispositivo que conta
os visitantes que tenho por dia.
O bonito da coisa é que aparece
na tela um mapa-múndi, mostrando a localização dos visitantes. Cada um aparece simbolizado por
uma espécie de balãozinho laranja.
Espero um pouco, e logo se forma
um pequeno cacho de gente no Sudeste. E, em seguida, como se fossem olhos que se abrem, despertando do sono branco do mapa,
surgem dois balões em Portugal,
um na Coréia, outro na Noruega...
Quem serão? Brasileiros em viagem, talvez. Vai ver que são meros
programas automáticos de busca.
O mecanismo indica quanto tempo
ficaram lendo o blog; em geral, é
menos de um segundo.
Pouco importa. A emoção não está em verificar o ibope pessoal, mas
em ver formar-se, num clique de
computador, uma rede esparsa e
frágil como uma teia de aranha, circundando a duras penas o planeta.
Lembrei-me de versos de Adalgisa Nery (1905-1980), falando sobre
como a poesia, por vezes, passa e se
esfrega "nos seres e nas coisas".
"Nunca sentiste uma força melodiosa/ Cercando tudo que teus
olhos vêem,/ Um misto de tristeza
numa paisagem grandiosa,/ Ou um
grito de alegria na morte de um ser
que queres bem?"
Difícil responder "sim" ou "não"
a uma pergunta dessas; mas Adalgisa Nery continua.
"Num circo, nunca se apoderou
de ti um amargor sutil/ Vendo animais amestrados/ E logo depois te
mostrarem/ Seres humanos imitando um réptil?"
Sem dúvida: e talvez o que exista
de poético nessa sensação está no
fato de que, a cada experiência nossa, cabe aplicar alguns dos procedimentos da própria poesia: a antítese, a metáfora, a rima...
E é de rima, de semelhança, de
aproximações, que Adalgisa Nery
trata nos versos seguintes.
"Nunca reparaste na beleza de
uma estrada/ Cortando a carne do
solo/ Para unir carinhosamente/
Os homens, de um a outro pólo?"
Claro que não é exatamente carinho aquilo que inspira os construtores de estradas. Mas a estrada, ela
mesma, não sabe disso. O que a estrada promete é mais do que nós,
humanos, podemos alcançar hoje
em dia. Mas o horizonte, pelo menos, dá para enxergar.
A mesma beleza dessa estrada
aparece na internet. Sua forma
mais emocionante está, com certeza, no Google Earth. O globo pequeno e colorido da Terra aparece
quase que tridimensionalmente.
Não sei ainda mexer direito no programa. Aperto de um jeito, o zoom
é rapidíssimo, e mergulho no meu
próprio planeta.
Onde fui parar? Não há sinal de
cidade nem de estrada. As fotos de
satélite, nítidas a mais não poder,
puseram-me em alguma cordilheira americana, perfurada de lagos
muito escuros. Avanço um pouco
para o Sul, e nas plantações quadriculadas, verdes, marrons e pardas,
ressurge o velho Homem.
Chego a uma cidade importante.
Era Salvador, era Paris.
A imagem logo perde em nitidez
e aparece salpicada de ícones pretos. São simbolozinhos de máquinas fotográficas, indicando que alguém passou por ali, tirou uma foto
e mandou-a para o Google.
Do vazio total, chego à superpopulação -e Notre Dame, por exemplo, fica indiscernível sob tantos
ícones, assim como a catedral de
verdade está apinhada de turistas.
Eles sempre atrapalham. Mas
também me trazem euforia.
"Quanta gente!" Tudo depende do
estado de alma, mas acho que, na
maioria das vezes, há mais alegria
do que raiva na exclamação.
Construíram um prédio novo do
lado de casa. Ainda está desabitado.
De noite, aquela parede morta me
dá tristeza e impaciência. Não vejo
a hora de se acenderem as luzes de
cada janela, como os balões laranja
que nascem no mapa da internet.
Famílias vão chegar, morar ali.
De um prédio novo desse jeito,
uma criança de cinco anos foi atirada pela janela. O caso é horrível,
monstruoso. Respiro fundo, olhando a parede escura. Coragem. Não é
coisa que aconteça todos os dias.
coelhofsp@uol.com.br
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Benjamin Biolay mostra nova face da canção francesa Índice
|