São Paulo, quarta-feira, 23 de abril de 2008

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MARCELO COELHO

Um prédio novo aqui do lado

Aquela parede morta me dá tristeza; não vejo a hora de se acenderem as luzes de cada janela

COMECEI UM blog na Folha Online faz coisa de um ano e meio. Não digo que seja um sucesso de público.
Também, quem manda... Minhas postagens são irregulares, e quase nunca estou sintonizado nos assuntos de grande interesse. No caso da menina Isabella, fujo de palpites. Também aqui, quero escrever sobre algo menos deprimente.
Como todo blogueiro, tenho a curiosidade de saber quanta gente me "acessa" na internet, e, por isso, instalei um dispositivo que conta os visitantes que tenho por dia.
O bonito da coisa é que aparece na tela um mapa-múndi, mostrando a localização dos visitantes. Cada um aparece simbolizado por uma espécie de balãozinho laranja. Espero um pouco, e logo se forma um pequeno cacho de gente no Sudeste. E, em seguida, como se fossem olhos que se abrem, despertando do sono branco do mapa, surgem dois balões em Portugal, um na Coréia, outro na Noruega...
Quem serão? Brasileiros em viagem, talvez. Vai ver que são meros programas automáticos de busca.
O mecanismo indica quanto tempo ficaram lendo o blog; em geral, é menos de um segundo.
Pouco importa. A emoção não está em verificar o ibope pessoal, mas em ver formar-se, num clique de computador, uma rede esparsa e frágil como uma teia de aranha, circundando a duras penas o planeta. Lembrei-me de versos de Adalgisa Nery (1905-1980), falando sobre como a poesia, por vezes, passa e se esfrega "nos seres e nas coisas".
"Nunca sentiste uma força melodiosa/ Cercando tudo que teus olhos vêem,/ Um misto de tristeza numa paisagem grandiosa,/ Ou um grito de alegria na morte de um ser que queres bem?"
Difícil responder "sim" ou "não" a uma pergunta dessas; mas Adalgisa Nery continua.
"Num circo, nunca se apoderou de ti um amargor sutil/ Vendo animais amestrados/ E logo depois te mostrarem/ Seres humanos imitando um réptil?"
Sem dúvida: e talvez o que exista de poético nessa sensação está no fato de que, a cada experiência nossa, cabe aplicar alguns dos procedimentos da própria poesia: a antítese, a metáfora, a rima...
E é de rima, de semelhança, de aproximações, que Adalgisa Nery trata nos versos seguintes.
"Nunca reparaste na beleza de uma estrada/ Cortando a carne do solo/ Para unir carinhosamente/ Os homens, de um a outro pólo?"
Claro que não é exatamente carinho aquilo que inspira os construtores de estradas. Mas a estrada, ela mesma, não sabe disso. O que a estrada promete é mais do que nós, humanos, podemos alcançar hoje em dia. Mas o horizonte, pelo menos, dá para enxergar.
A mesma beleza dessa estrada aparece na internet. Sua forma mais emocionante está, com certeza, no Google Earth. O globo pequeno e colorido da Terra aparece quase que tridimensionalmente.
Não sei ainda mexer direito no programa. Aperto de um jeito, o zoom é rapidíssimo, e mergulho no meu próprio planeta.
Onde fui parar? Não há sinal de cidade nem de estrada. As fotos de satélite, nítidas a mais não poder, puseram-me em alguma cordilheira americana, perfurada de lagos muito escuros. Avanço um pouco para o Sul, e nas plantações quadriculadas, verdes, marrons e pardas, ressurge o velho Homem.
Chego a uma cidade importante.
Era Salvador, era Paris.
A imagem logo perde em nitidez e aparece salpicada de ícones pretos. São simbolozinhos de máquinas fotográficas, indicando que alguém passou por ali, tirou uma foto e mandou-a para o Google.
Do vazio total, chego à superpopulação -e Notre Dame, por exemplo, fica indiscernível sob tantos ícones, assim como a catedral de verdade está apinhada de turistas.
Eles sempre atrapalham. Mas também me trazem euforia.
"Quanta gente!" Tudo depende do estado de alma, mas acho que, na maioria das vezes, há mais alegria do que raiva na exclamação.
Construíram um prédio novo do lado de casa. Ainda está desabitado.
De noite, aquela parede morta me dá tristeza e impaciência. Não vejo a hora de se acenderem as luzes de cada janela, como os balões laranja que nascem no mapa da internet.
Famílias vão chegar, morar ali.
De um prédio novo desse jeito, uma criança de cinco anos foi atirada pela janela. O caso é horrível, monstruoso. Respiro fundo, olhando a parede escura. Coragem. Não é coisa que aconteça todos os dias.


coelhofsp@uol.com.br

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