São Paulo, Sexta-feira, 23 de Abril de 1999
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Zélia Gattai abre sua casa para a literatura

Xando Pereira/Folha Imagem
Zélia Gattai em frente a sua residência, em Salvador



Em "A Casa do Rio Vermelho", a escritora conta histórias ocorridas na residência de Jorge Amado, onde o casal mora há quase quatro décadas


OTÁVIO DIAS
enviado especial a Salvador

A escritora Zélia Gattai, 82, lança hoje, na Bienal do Rio, seu sexto livro de memórias, dedicado a contar histórias ocorridas em sua casa -e de Jorge Amado- em Salvador, o endereço mais famoso da capital baiana.
Desde que o escritor decidiu voltar para a Bahia no início dos anos 60, sua bela casa, situada numa ladeira tranquila e arborizada no bairro do Rio Vermelho, tem atraído visitantes anônimos e ilustres, vindos de várias partes do mundo.
Em "A Casa do Rio Vermelho", Zélia abre as portas da famosa residência ao leitor comum e narra fatos ocorridos em quase quatro décadas do cotidiano do casal.
A autora fala sobre o novo livro às 18h de hoje, na bienal, em conversa informal com o escritor português Augusto Abelaira (que lança o livro "Bolor") e o jornalista Zuenir Ventura (que autografa "Ira, Mal Secreto").
Leia entrevista à Folha no jardim da casa que inspirou o livro.

Folha - Como foi sua chegada à Bahia?
Zélia Gattai -
Morávamos no Rio e decidimos vir para a Bahia em 1961. Achamos que nossos filhos teriam uma adolescência mais tranquila. Eu já estivera várias vezes na Bahia e me sentira como um corpo estranho, uma intrusa. Jorge estava sempre rodeado de amigos, a recordar fatos passados, amores antigos. Todo mundo se divertia, e eu ficava ouvindo, calada.
Folha - Então foi difícil?
Zélia -
Foi. Mas tenho bom gênio, fui me adaptando e acabei adorando a Bahia. Quando nos mudamos, em 63, não tinha quase nenhuma árvore no jardim. Só formiga. Hoje, temos sapoti, manga, cajá...
Folha - O livro é um relato desse período?
Zélia -
Começa naquela época e vem até hoje. Eu ainda não tinha escrito nada sobre a Bahia. Relato fatos acontecidos aqui em casa, escrevo sobre minha vivência em Salvador, dou meu testemunho sobre o progresso da cidade. A vida era bem mais difícil. Para fazer compra, era preciso ir até a feira de São Joaquim, no meio da lama. Falo de personagens da Bahia, das mães-de-santo, de visitas ilustres como Glauber Rocha e Dorival Caymmi. Quando Vinícius de Moraes morava na Bahia, ele nos visitava quase todos os dias. Uma vez, cantou todas as suas músicas infantis para os meus netos. Gravei tudo e, depois que ele morreu, dei a fita para Gilda, sua última mulher. Era a única gravação. Foi feita aqui.
Folha - Aos poucos, a cada novo livro, você está escrevendo a biografia de Jorge Amado?
Zélia -
Claro. Meu primeiro livro, "Anarquistas, Graças a Deus", foi sobre minha família, em São Paulo. Quando terminei, disse: "Aí está minha obra completa". Mas a gente vai tomando gosto e decidi escrever também sobre a família de Jorge, sua infância. O escritor tem leitores que querem saber como é o autor na intimidade. Achei que podia escrever algo que elucidasse. Podia dizer, por exemplo, de quem ele herdou essa imaginação fértil. Foi da mãe, dona Eulália. Ela inventava cada história. Do pai, ele herdou a energia. O coronel João Amado era um desbravador de matas. Jorge não fala grosso, não, mas é um comandante. O "seu" João também era poeta. Quando Jorge nasceu na fazenda, o coronel, que estava do lado de fora do quarto, entrou, enrolou a criança num pano e levou-a para fora de casa. Era uma noite de luar, linda. Quando voltou, disse: "Fui dar um banho de lua para clarear a inteligência do menino".
Folha - Parece que deu certo.
Zélia -
Acho que deu (risos). Contei essa história em "Um Chapéu para Viagem". De lá para cá, escrevi vários livros sobre Jorge Amado.
Folha - Ele dá dicas ou sugestões quando você está escrevendo?
Zélia -
Ele não fica se metendo, mas tive a sorte de ter um professor em domicílio. Uma vez, pedi a ele para não matar um personagem. "Ele tem de morrer, não pode ser diferente. Eu acho que morre", respondeu. "Como acha? Você é o dono do personagem. Pode matar ou não", continuei. Jorge discordou: "Depois que lanço um personagem, ele tem vida própria. Se eu impuser minha vontade, ele perde a personalidade". Quando estava escrevendo meu romance "Crônica de uma Namorada", tive um problema semelhante. Ele perguntou o que estava acontecendo. Expliquei que o Beto, personagem do livro, estava avançando o sinal. Estava passando a mão em Geana. Ele perguntou: "E daí?". Respondi que estava pensando em cortar as asas dele. Jorge reagiu: "Você não pode. Corte as asas dela, que não fez nada ainda". "Não posso. Ela está adorando", respondi. "Ah, está adorando?", perguntou. "Então, minha filha, não se meta na vida dos outros", disse.
Folha - Como é sua rotina ao escrever um livro?
Zélia -
Essa casa é muito movimentada e, no último ano, foi ainda pior porque Jorge esteve bem doente. Ele entrou em depressão, não falava, não queria nada. O livro foi uma salvação. Levantei-me todos os dias às 6h e fui para o computador. Escrevi ao som de Sinatra e Nana Caymmi. Escrever memórias é uma grande emoção. Volto a viver cada cena.
Folha - Como ele está agora?
Zélia -
Está muito melhor. Ele não pode se cansar e se emocionar e anda meio calado. Mas está prestando atenção em tudo.

Livro: A Casa do Rio Vermelho
Autora: Zélia Gattai
Lançamento: Record
Quanto: R$ 25 (304 págs.)



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