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CINEMA - "ORFEU"
Filme confirma mito, diz Caetano Veloso
JORGE MAUTNER
especial para a Folha
Quando entrei no apartamento
de Caetano Veloso, bem em frente
à praia de Ipanema, na companhia
de Nelson Jacobina, fomos saudados pelas risadas do seu lindo filho
caçula, Tom, que corria pela sala.
Em seguida, Caetano começou a
falar de Arthur Schopenhauer e
seu livro "Mundo como Vontade e
Representação", que ele estava lendo. Chamou-nos a atenção para o
trecho em que o pensador germânico falava sobre o sexo e no qual
ele definia a pederastia e o homossexualismo como doenças e a mulher como total objeto de procriação e portanto um ser inferior.
E, no entanto, em meio a tantas
coisas preconceituosas afirmadas
pelo filósofo, havia uma espantosa
declaração: que a raça branca seria
uma anormalidade doentia da espécie humana e que o verdadeiro
homem é o de cor marrom e negra.
Caetano Veloso colabora com
Cacá Diegues mais uma vez, como
já havia feito em "Tieta", ao compor a trilha de "Orfeu", interpretado pelo músico Toni Garrido, que
estréia hoje em circuito nacional.
Leia trechos da entrevista.
Folha - O que você poderia falar
sobre o seu disco misterioso?
Caetano Veloso - Que disco? Não
existe nenhum disco misterioso...
Folha - Dizem ser um disco que
você gravou e não fala sobre. Talvez um disco com João Gilberto?...
Veloso - Bem, trabalhos com
João Gilberto existem. Fui a Buenos Aires e fiz três noites com ele,
foi espetacular, mas nós não gravamos algo que dê para disco. Gravamos assim domesticamente para a
gente mesmo ouvir. Portanto não
há disco nenhum.
O que há é que eu tenho plano de
produzir o próximo disco do João.
Mas isso depende dele, de como as
coisas andarem. Se eu fizer, terá sido o trabalho da minha vida.
Folha - Fale da trilha sonora de
"Orfeu" e trace comparações entre
este trabalho e o "Orfeu do Carnaval", de Marcel Camus. E também
sobre o filme "Central do Brasil",
porque li você dizendo que, apesar
de ter gostado muito do filme,
achava que nele preponderava a
outra visão dos estrangeiros sobre
o Brasil, isto é, a pobreza uniforme
e cinematográfica.
Veloso - Esse texto que você leu
no jornal em que eu falo sobre o
"Central do Brasil" foi de fato uma
compilação feita pelo jornalista de
uma entrevista que eu dei pra ele,
numa entrevista geral, genérica,
não foi um artigo. Se eu parasse para escrever um artigo sobre "Central do Brasil", seria muito diferente. Aquilo são coisas que saíram espontaneamente no meio de uma
conversa que envolvia muitas outras coisas. Então você tem que fazer uma ressalva, um desconto.
Agora, sobre o "Orfeu do Carnaval", feito por Marcel Camus, existe um texto meu elaborado, embora não muito completo, no meu livro "Verdade Tropical". Eu conto
a história desse filme na minha formação. A reação que tive na época,
que foi, como a da maioria dos brasileiros, negativa, porque eu era
um adolescente. As platéias brasileiras não gostaram do filme. O filme agradou aos estrangeiros, mas
não aos brasileiros.
Agora, eu conto no livro, e aqui
posso adiantar um pouco mais essa explicação, que, desde o tropicalismo, a relação interna com esse
filme mudou muito. Porque um
dos temas do tropicalismo justamente era tentar reproduzir ironicamente, mas procurando participar do entendimento dos motivos,
a visão dos estrangeiros sobre o
Brasil. Então esse filme é o paradigma da visão dos estrangeiros
sobre o Brasil. Não só em si, como
o resultado dele é a prova disso.
A reação que nós brasileiros tivemos contra esse filme na época revela a nossa brasilidade. O filme
era frustrante do ponto de vista do
que a gente esperava de um filme.
Enquanto para os estrangeiros foi
o contrário, foi a revelação do Brasil por meio do cinema. E sobretudo por causa da música.
Porque aquilo também era o lançamento mundial da bossa nova.
Naquilo revelava-se a paisagem do
Rio, num idealização de uma população homogeneamente negra,
numa favela, e com tratamento
musical da bossa nova.
O "Orfeu" é um filme novo de
Cacá Diegues no estágio em que ele
se encontra. O Cacá de uma certa
forma terminou encarnando o cinema novo. Isso não é pouca coisa.
Por causa do temperamento mais
diplomático, equilibrado, razoável, cheio de bom senso dele, terminou tendo que responder sozinho por tudo que o cinema novo
foi, suas conquistas e frustrações.
E o fato é que a geração dele começou a fazer cinema sem saber
fazer cinema. É uma gente que tinha muita ambição sociológica,
muito amor pelo cinema, mas eles
foram se tornando fazedores de filmes na medida em que foram fazendo filmes.
Em "Veja Esta Canção", Cacá demonstrou também que hoje há
uma geração de técnicos que fazem
os filmes andarem sozinhos. Ele
tem grandes filmes, mas em nenhum deles o nível de fatura era assim desenvolvido e desembaraçado como em "Veja Esta Canção". E
se viu grandemente confirmado
em "Tieta", que para mim é um
dos grandes filmes brasileiros.
Eu tenho muitas razões para ser
apaixonado por "Tieta", é um dos
meus filmes favoritos. Para mim,
"Tieta" é um grande passo; não só
do Cacá como encarnação, como
avatar do cinema novo, mas também um grande passo do cinema
brasileiro como um todo.
E "Orfeu" é um filme que já foi
feito depois desse passo. "Orfeu",
antes de tudo, é uma confirmação
do mito de Orfeu ligado ao Brasil,
desta vez feita por um brasileiro. E
o filme é produzido com uma competência arrasadora.
Então fazer a música para este filme é uma coisa que eu não queria,
porque dava muita importância à
questão do Orfeu e ao repertório
que foi composto para a peça de
Vinicius por Tom e Vinicius e para
o filme do Marcel Camus por Tom,
Vinicius, Luis Bonfá e Antonio
Maria, que é um repertório de
obras-primas. Achava que eu não
deveria mexer nisto.
Acabei como músico contratado,
porque o Cacá me pediu, me convenceu. Terminei compondo um
samba enredo do qual me orgulho
muito e fiquei muito contente de
ter feito a canção de amor que em
princípio eu tinha me negado a fazer, mas que o Cacá me convenceu
a fazer, porque achei que a canção
acabou confirmando aquele estilo
de canção que Tom e Vinicius
compuseram para a peça.
Jorge Mautner é cantor, compositor e escritor,
autor de músicas como "Vampiro" e "Maracatu
Atômico".
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