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CINEMA
"A NOITE AMERICANA"
Longa de 73 explora bastidores de uma filmagem
Truffaut filma e festeja o próprio métier do cinema
Divulgação
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Jacqueline Bisset e François Truffaut em cena de "A Noite Americana" (1973); longa do diretor (e aqui ator) francês entra em cartaz |
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
Um filme é como um trem
que avança na noite, nos diz
o cineasta Ferrand, personagem
interpretado pelo próprio François Truffaut em seu filme-sobre-o-cinema "A Noite Americana" (1973). Mas, afinal, quem é que toma o trem, em qual classe e quem
é que conduz? A pergunta, feita
numa carta que Jean-Luc Godard
endereçou a Truffaut, dava início
ao fim de uma longa e já desgastada amizade.
Godard desprezava o aburguesamento de Truffaut e, no fundo,
invejava seu sucesso (com o público e com as mulheres). Truffaut invejava o talento de Godard, mas desprezava o papel de "estrela da esquerda" que este passara a desempenhar.
Em sua longa e rancorosa resposta à carta de Godard, Truffaut
o acusaria de impostura e egoísmo. Só muitos anos após a morte
do amigo é que Godard acenaria
com o perdão: às censuras ideológicas que fizera a Truffaut, o velho
comparsa da geração nouvelle vague respondera com o coração.
Godard não era o único: no cenário da França pós-maio de 68,
"A Noite Americana" simplesmente não soava muito bem. Enquanto os jovens cineastas faziam do coletivismo e do materialismo
palavras de ordem para reformar
o sistema de produção cinematográfica do país, Truffaut e seu filme invocavam uma visão (clássica) do cinema como arte feita de
magia e tradição.
O cineasta foi prontamente acusado de capitulacionismo e mesmo traição, porque, quando jovem, nos tempos em que era um
crítico dos mais polemistas, insurgira-se contra essa mesma tradição que passara a cultivar.
O filme dentro do filme
"A Noite Americana" é uma espécie de celebração do métier cinematográfico -o título se refere, como se sabe, ao efeito típico
dos filmes hollywoodianos em
que, por meio de um filtro, rodam-se cenas diurnas como se
fossem noturnas.
Trata-se da história de uma filmagem. Truffaut quer nos mostrar como os bastidores de uma
filmagem são sempre muito mais
interessantes do que o filme em si,
para o que contribui, no caso, a
mediocridade do "filme dentro
do filme" de "A Noite Americana", um drama burguês de quinta
categoria chamado "Eu vos Apresento Pamela".
Truffaut , tal como o personagem-cineasta que interpreta, teve
problemas na filmagem e só salvou o seu filme na sala de montagem, criando monólogos interiores para seu alter ego Ferran, o diretor que responde perguntas para as quais nem sempre tem de fato as respostas.
Mesmo assim, Ferran continua
um personagem um tanto vago
-o que prevalece no filme é a
realidade dos atores, a insegurança, os caprichos, a inconstância e
o tédio que fazem o dia-a-dia de
um ator de cinema.
Sempre discreto, Truffaut se
resguardara, o que não impediria
Godard de acusá-lo de hipocrisia:
enquanto nos verdadeiros bastidores o cineasta cultivava um "affair" com a estrela Jacqueline Bisset, no filme seu personagem era
o único a não se meter em nenhuma confusão amorosa.
As angústias pessoais do cineasta estão mais nos infindáveis problemas de paternidade que atravessam o filme (da atriz coadjuvante, que não sabe de quem está grávida, até a atriz principal, que
se meteu num casamento edipiano) e o "filme dentro do filme"
(que acaba por culminar num
parricídio).
Criança bastarda e enjeitada
que só foi descobrir a identidade
(judia) de seu verdadeiro pai aos
36 anos de idade, Truffaut nunca
deixou de manter com o cinema e
com os seus mestres uma relação
das mais edipianas -o mesmo se
pode dizer do francês Jean-Pierre
Léaud, o ator que Truffaut, desde
"Os Incompreendidos", de 1959,
praticamente adotou e com quem
contracena em "A Noite Americana".
Só tardiamente, Godard, acenando com o perdão, compreenderia que todo o desejo de ascensão social e profissional de Truffaut decorria dessa infância abastardada de "cinefilho".
A Noite Americana
La Nuit Américaine
Produção: França/Itália, 1973
Direção: François Truffaut
Com: Jacqueline Bisset, Jean-Pierre
Léaud e François Truffaut
Onde: a partir de hoje nos cines Espaço
Unibanco e Cineclube DirecTV
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