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São Paulo, sexta-feira, 23 de maio de 2003

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CINEMA

"A NOITE AMERICANA"

Longa de 73 explora bastidores de uma filmagem

Truffaut filma e festeja o próprio métier do cinema

Divulgação
Jacqueline Bisset e François Truffaut em cena de "A Noite Americana" (1973); longa do diretor (e aqui ator) francês entra em cartaz


TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Um filme é como um trem que avança na noite, nos diz o cineasta Ferrand, personagem interpretado pelo próprio François Truffaut em seu filme-sobre-o-cinema "A Noite Americana" (1973). Mas, afinal, quem é que toma o trem, em qual classe e quem é que conduz? A pergunta, feita numa carta que Jean-Luc Godard endereçou a Truffaut, dava início ao fim de uma longa e já desgastada amizade.
Godard desprezava o aburguesamento de Truffaut e, no fundo, invejava seu sucesso (com o público e com as mulheres). Truffaut invejava o talento de Godard, mas desprezava o papel de "estrela da esquerda" que este passara a desempenhar.
Em sua longa e rancorosa resposta à carta de Godard, Truffaut o acusaria de impostura e egoísmo. Só muitos anos após a morte do amigo é que Godard acenaria com o perdão: às censuras ideológicas que fizera a Truffaut, o velho comparsa da geração nouvelle vague respondera com o coração.
Godard não era o único: no cenário da França pós-maio de 68, "A Noite Americana" simplesmente não soava muito bem. Enquanto os jovens cineastas faziam do coletivismo e do materialismo palavras de ordem para reformar o sistema de produção cinematográfica do país, Truffaut e seu filme invocavam uma visão (clássica) do cinema como arte feita de magia e tradição.
O cineasta foi prontamente acusado de capitulacionismo e mesmo traição, porque, quando jovem, nos tempos em que era um crítico dos mais polemistas, insurgira-se contra essa mesma tradição que passara a cultivar.

O filme dentro do filme
"A Noite Americana" é uma espécie de celebração do métier cinematográfico -o título se refere, como se sabe, ao efeito típico dos filmes hollywoodianos em que, por meio de um filtro, rodam-se cenas diurnas como se fossem noturnas.
Trata-se da história de uma filmagem. Truffaut quer nos mostrar como os bastidores de uma filmagem são sempre muito mais interessantes do que o filme em si, para o que contribui, no caso, a mediocridade do "filme dentro do filme" de "A Noite Americana", um drama burguês de quinta categoria chamado "Eu vos Apresento Pamela".
Truffaut , tal como o personagem-cineasta que interpreta, teve problemas na filmagem e só salvou o seu filme na sala de montagem, criando monólogos interiores para seu alter ego Ferran, o diretor que responde perguntas para as quais nem sempre tem de fato as respostas.
Mesmo assim, Ferran continua um personagem um tanto vago -o que prevalece no filme é a realidade dos atores, a insegurança, os caprichos, a inconstância e o tédio que fazem o dia-a-dia de um ator de cinema.
Sempre discreto, Truffaut se resguardara, o que não impediria Godard de acusá-lo de hipocrisia: enquanto nos verdadeiros bastidores o cineasta cultivava um "affair" com a estrela Jacqueline Bisset, no filme seu personagem era o único a não se meter em nenhuma confusão amorosa.
As angústias pessoais do cineasta estão mais nos infindáveis problemas de paternidade que atravessam o filme (da atriz coadjuvante, que não sabe de quem está grávida, até a atriz principal, que se meteu num casamento edipiano) e o "filme dentro do filme" (que acaba por culminar num parricídio).
Criança bastarda e enjeitada que só foi descobrir a identidade (judia) de seu verdadeiro pai aos 36 anos de idade, Truffaut nunca deixou de manter com o cinema e com os seus mestres uma relação das mais edipianas -o mesmo se pode dizer do francês Jean-Pierre Léaud, o ator que Truffaut, desde "Os Incompreendidos", de 1959, praticamente adotou e com quem contracena em "A Noite Americana".
Só tardiamente, Godard, acenando com o perdão, compreenderia que todo o desejo de ascensão social e profissional de Truffaut decorria dessa infância abastardada de "cinefilho".


A Noite Americana
La Nuit Américaine
   
Produção: França/Itália, 1973
Direção: François Truffaut
Com: Jacqueline Bisset, Jean-Pierre Léaud e François Truffaut
Onde: a partir de hoje nos cines Espaço Unibanco e Cineclube DirecTV



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